Macumba

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quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Parricidio Simbólico




 

Felipe dos Santos Fontes

Autor

 
Parricídio Simbólico

 

Monografia apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Rio como requisito final para obtenção do título Especialista acadêmico em Psicologia Junguiana no curso realizado nos anos 2012/13.

 

Alvaro de Pinheiro Gouvea

Isabela Fernandes

Orientação

 
Departamento de Psicologia

Programa de Pós-graduação

 
Rio de Janeiro

08 de novembro de 2013

 


 

SUMÁRIO

 

Prefácio --------------------------------------- 02

Introdução------------------------------------ 07

1.  Anima e Animus - A Importância da Imagem de Casal para o Filho --------------------- 16

2.1      Urano e Crono------------------------ 25

2.2      Crono e Zeus-------------- ----------- 28

2.3      Anakim Skywalker – O Filho sem Pai e seu Destino----------------------------------- 35

3.  Individuação e Parricídio-------------- 49

Conclusão------------------------------------- 58

Bibliografia------------------------------------ 63

 
 

Prefácio

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            Por essas razões que reconheço em Jung um precursor pleno de mim mesmo. E, no mundo concreto, essa identificação é refletida em meus professores em especial no Alvaro, coordenador do curso.

            É que me identifico, beirando a totalidade, com o que os autores junguianos defendem.  Enquanto pesquisava e redigia essa monografia fiquei satisfeito em constatar que as ideias brotando em meus dedos encontravam eco nas leituras recomendadas pelo curso. Aliás, creio que o tema ora escolhido foi grande sorte, ou quem sabe sincronicidade, pois o parricídio simbólico é assunto recorrente nos livros junguianos, mas na pesquisa bibliográfica que fiz não encontrei nenhum livro nacional que sistematize o assunto como tema principal, o que pavimentou a possibilidade de um trabalho importante, e ainda, pioneiro.

            Acabei me encontrando na especialização junguiana após fazer uma especialização de filosofia, também na PUC-Rio, notadamente porque quando fui entregar trabalhos havia um cartaz chamando para as inscrições. Achei perfeito. Logo verifiquei se aceitavam alunos não psicólogos e ante a confirmação fiquei em êxtase. Estava perante a possibilidade que vinha almejando: a de estudar as ideias de uma psicologia que sabe lidar com os opostos. É que meu interesse na filosofia era buscar uma visão mais confiável do mundo e quanto mais estudava mais era movido para a psicologia porquanto acredito que o homem que percebe o mundo, o observador, é a causa de tudo que acontece. E, a psicologia lida melhor com esse preceito do que qualquer outra área acadêmica.

            E, me surpreendi positivamente, mesmo depositando muitas expectativas no curso: tudo que via na especialização era o que sempre admirei ao longo da minha vida: mitologia, relatividade Bergsoniana, exposição artística, trabalhos manuais com o barro.

            Teve um lado incômodo. Senti de um ou dois alunos do curso preconceito por não ser graduado em psicologia. Creio que era um enrijecimento pela não aceitação de que não existe seleção perfeita, ou seja, antes de julgar quem é adequado ou não deve se abraçar o mundo como ele é. Essa é outra percepção da integração dos opostos, a de contemplar as pessoas sem preconceito, igualdade face diferença. O que importa é o aspecto funcional e eu não estava ali para ser um psicólogo. Estava para aprofundar meus estudos na área acadêmica que admiro e respeito. De qualquer forma, tomo como certo que Jung aprovaria uma especialização multidisciplinar, pois ele sempre foi aberto ao diferente; e não há registros que tenha pretendido ocultar qualquer aspecto profissional que tenha vivenciado. Nesse sentido seu último livro “O Homem e seus Símbolos” no qual vários autores sob a coordenação dele fazem um livro voltado para leigos. Pondero, igualmente, que sua trajetória profissional afasta vaidades acadêmicas verticais, como títulos. Também podemos compreender a situação de forma metafórica imaginando se as pessoas nascidas de parto normal rejeitassem as de cesárea? Parto normal pode ser “melhor” para a criança e o bebê, mas desde o momento que se originou nova forma de nascimento não cabe no presente questionar validade de algo passado, no caso a aprovação na entrevista para ingresso no curso.

            Enfim, fiz o curso e esta é a monografia prefacienda. Quanto ao tema escolhido pouco do que escrevi é novidade. Talvez um tanto novel seja defender que Zeus esteja longe de um símbolo de homem em individuação. Digo isso porque alguns junguianos o percebem como alguém com vários polos integrados, situação que não reconheço.

            Quanto às referências literárias, creio que poetas como Hesíodo e Homero se transformaram em escritores midiáticos como George Lucas pelo Star Wars ou os irmãos Wachowski por Matrix. É que os mitos antigos ou os indígenas não mais são suficientes a explicar a sociedade atual. Os filmes épicos podem ser considerados uma nova mitologia na medida em que o povo se identifique com o simbolismo por detrás da estória.

            No que tange aos junguianos todos defendem ideias parecidas: não violência, respeito aos limites dos outros, proscrição de mentira, aceitar a sombra, integração dos opostos, importância dos sonhos e com o considerável diferencial de aceitar valores míticos como explicadores do mundo. Freud se focou nas repressões familiares, ou seja, limitou sua visão aos arquétipos ligados à afetividade vertical, enquanto Jung vislumbrou ao lado do complexo edipiano o que ele chamou de inconsciente coletivo.

            Talvez a única divergência sistêmica que vejo entre os junguianos é como a consciência modifica o inconsciente. Nietzsche ao longo de seus livros fez alusões de que o homem que superar a moral religiosa será movido a entrar em contato com forças maiores que ele. E quando isso ocorrer ele poderá ficar dominado por ela tendendo a se adoentar tão logo esgotada sua utilidade para o complexo que aderiu, ou então, conseguir sair dele e se tornar mais forte do que quando entrou. Quiçá isso explique a relação consciente e inconsciente na medida em que as acepções familiares se confrontadas com outras serão postas a prova. E, se o homem for forte o suficiente saberá distinguir o que ambas tem de limitado e ato contínuo visionar o que tem de próprio em cada uma e abandonar o resto. Creio que esse reconhecimento de si somado ao descarte de resíduos não funcionais explica a relação entre tais opostos da mente.

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Introdução

            O relacionamento familiar, notadamente envolvendo pais e filhos, demonstra a alteridade[1] de cada um, na medida em que informa o referencial do filho para o processo de individuação. Tais afetos familiares não são visualizáveis pelos integrantes do grupo, pois eles somente sabem que possuem vínculos parentais, mas não possuem domínio consciente do significado que tal alteridade exprime.

            Esse significado somente é compreensível para aqueles que se dedicam ao estudo da psicologia junguiana, em especial à interpretação de mitos. Ou então para aqueles que alcançaram uma visão panorâmica de si, o que comumente implica por atravessar com sucesso ritos de passagem: “Os chamados ritos (ou rituais) de passagem, que ocupam um lugar tão proeminente na vida de uma sociedade primitiva (cerimônias de nascimento, de atribuição de nome, de puberdade, casamento, morte, etc.), têm como característica a prática de exercícios formais de rompimento normalmente bastante rigorosos, por meio dos quais a mente é afastada de maneira radical das atitudes, vínculos e padrões de vida típicos do estágio que ficou para atrás[2].”.

            Pois bem, o objetivo da presente monografia é propor o parricídio simbólico, para aquele que almeja a alforria do verticalismo[3] dos pais. Essa é a essência deste estudo: superar os inconvenientes sem, com isso, criar outros. Vejamos: a independência não se conquista com atos violentos[4], ao contrário, ela é alcançada com a diferenciação típica do processo de individuação junguiano. E essa diferenciação presta-se inicialmente a separar o que é dos pais face o que é do filho, até para que a criatura possa escolher que herança pretende receber dos criadores. Daí, o verticalismo não ser uma expressão de submissão como a sociedade ordinariamente define, mas sim uma relação de vulnerabilidade entre o observador e seus vínculos com demais pessoas, a qual tem como pilar fundamental a divinização de algum valor. Ou seja, para quem acredita em violência para se impor, viverá cercado por guerra; para quem acredita que precisa de pais para se impor, viverá cercado por disputas familiares; quem acredita que precisa de títulos sociais para se impor, viverá cercado por disputas ideológica; quem acredita que precisa de dinheiro para se impor, viverá cercado por competição. Por óbvio, a consequência imediata do verticalismo é a segregação. Em todos os casos, se separam iguais por critérios externos ao que são próprios, ou seja, segregados por rótulo, fruto do enrijecimento que permeia o raciocínio daquele que observa.

            Percebe-se que verticalismo é o engessamento, a auto-conservação tão criticada por Nietzsche[5] por ser aniquiladora da criatividade, consubstanciando, sob o viés psicológico, a inabilidade do homem que enquanto filho é incapaz desmistificar valores que considera intransponíveis, notadamente por serem absorvidos sem qualquer triagem mediante herança através do inconsciente. Assim, como veremos nos mitos, o filho foi trazido ao mundo pelos pais e, portanto, deve respeitar tais forças sob pena delas ficarem latentes no inconsciente provocando todo tipo de imagem devoradora típica dos símbolos verticais, posicionando o homem nas trincheiras da vulnerabilidade a ponto de fazê-lo associar com pessoas ou grupos forçadamente. Em suma, toda associação deve ser motivada pela vontade de estar próximo, e não por um elemento externo como proteção ou algum desejo reprimido de apropriação. E, o causador desses dois indesejáveis vetores é o verticalismo, ou seja, a incapacidade do homem em reconhecer que a sua alteridade é composta pela vontade de seus pais, a qual não foi diferenciada pelo parricídio simbólico.

            Nesse sentido posso citar: “O ciclo de alteridade engloba os arquétipos da anima, no homem, e do animus, na mulher, que padroniza o relacionamento do ego com o outro no nível corporal, social, ideativo-emocional e da natureza de dialética e igualitária.”[6]. Lendo o restante do texto a que a transcrição se refere o autor segue posicionando pela necessidade de uma evolução que ele chama de passagem dos arquétipos patriarcal e matriarcal para o arquétipo de alteridade. A ideia que ele defende tem semelhanças com a do parricídio simbólico tendo como diferença, meramente terminológica, que verticalismo é chamado de arquétipos patriarcal e matriarcal, pelo que ele distingue verticalismo em dois arquétipos, quais sejam, do pai e da mãe. Depois ele delineia que ambos os arquétipos estão associados sistemicamente, na medida em que descreve autores que defendem alternância entre culturas onde prevaleceria o modelo patriarcal ou seu oposto, para concluir que não é bem assim, pois mesmo em uma sociedade patriarcal o arquétipo matriarcal também está ativado: “... podemos conceber que culturas atuais que apresentam grande exuberância matriarcal, como tantas culturas brasileiras negras e índias, por exemplo, não sejam necessariamente mais atrasada que a cultura europeia, que apresenta nítida dominância patriarcal.”[7]. Essa união sistêmica entre os arquétipos verticais descritas pelo autor Byington é o objeto do primeiro capítulo.

            Outrossim, cumpre salientar, considerando a validade do complexo de Édipo, que em uma sociedade onde a mulher domine a administração familiar o padrão será patriarcal e vice-versa, ou seja, se a mulher tiver predominância na influência perante seu parceiro sexual ela definirá o modelo patriarcal, pois sabedora, ainda que inconscientemente, que o filho desenvolverá pulsão por morte dirigida contra o arquétipo vertical dominante, por óbvio será melhor se manter fora dessa linha de fogo. Senão, pensemos, se o filho invejará a administração tocada pelas autoridades familiares, antes mesmo de se dar conta da sua própria autoridade, segue que ele disputará vorazmente com aquele que responde pelo comando, seja a mãe ou o pai.  Valendo a leitura que resume o que ora é exposto: “Essa fatídica distribuição infantil de impulsos de morte (thanatos:destrudo) e amor (eros:libido) constitui o fundamento do agora celebrado complexo de Édipo, que Sigmund Freud, há uns cinquenta anos, apontou como a grande causa do fracasso do adulto no sentido de comportar-se como ser racional.”[8].

            Contudo, cabe pontuar que a vivência de tal complexo concorre com o parricídio simbólico, ou seja, se o filho conceber utilidade em tomar o poder dos pais para si, então, será infeliz como Édipo, seja competindo com os pais, seja competindo na sociedade com aquelas pessoas em que projetar a figura de autoridade. Em suma, o complexo de Édipo realmente acontece, mas não é uma necessidade, pelo contrário, demonstra o fracasso do homem em tornar conscientes suas infantilidades, pois o filho não soube distinguir onde termina a autoridade dos pais para com si, ou mesmo teve forças para se desvencilhar dessa influência de forma consciente e harmônica.

            Também na mesma linha: “O matricídio e o parricídio simbólicos são fundamentais para o gradual estabelecimento da identidade como ser separado já nos estágios iniciais do processo de individuação.”[9]. O junguiano expõe a necessidade evolutiva de um estágio obscuro para outro consciente. E prossegue em parágrafo seguinte: “... é importante não dissociarmos de nossas origens, de nosso caos original, pois somente dele pode se estruturar um novo cosmos.”. O autor percebe a necessidade de um processo evolutivo cuja meta principal é distinguir o filho como entidade própria. E quanto não dissociar das nossas origens, é de fato imperioso, pois não há como estabelecer uma ponte saudável para uma realidade mais própria ao filho mediante puro questionamento frontal aos pais. Aliás, essa é a razão pela qual o pensamento acadêmico filosófico que não apresenta alternativas aos questionamentos que faz é natimorta. Se o filho, em suprema solidão, deve superar a imposição da sexualidade de duas pessoas, seus pais, o que, por si, já é uma tarefa que soa como impossível para muitos, jamais conseguirá êxito confrontando os dois ou sequer um deles. A força que oportuniza o nascimento de um filho é a soma do poderia do pai e da mãe, então a criatura tomar essa energia dos criadores como ameaçadora é uma atitude que a maior parte dos estudos filosóficos tendem como adequada; mas, assim agir, é um ato de açodamento. De qualquer forma, é natural que dentro deste processo evolutivo haja um afastamento do filho das suas origens, leia-se do seio que circunda seus pais, porquanto, como tratado no capítulo primeiro, existe um jogo político entre pai e mãe que para ser compreendido pede por um deslocamento de eixo em ordem a garantir que o filho desenvolva uma nova visão acerca do relacionamento deles, para, então, tratar com eles não mais como deuses, mas como amigos. Portanto, a grande sabedoria desse processo é que o afastamento se dê da maneira menos traumática possível.

            Cabe pontuar, na esteira dessa introdução, que parricídio ou matricídio simbólicos encerram o mesmo objetivo para o fim desse estudo, ou seja, o presente trabalho não é sobre o assassinato simbólico do pai, mas sim dos pais. É que na mitologia grega o parricídio se popularizou mais dado o caráter patriarcal daquele povo, por isso a abordagem dos mitos ilustra uma violência direta do filho contra pai, tendo a mãe papel de intermediária nesse evento, indiferente ou até de enganada. Trata-se de uma questão cultural, ou seja, como o homem aceitou o ônus de ser o chefe da família ele deve responder pelas dores de quem não está satisfeito com a administração do lar. De qualquer forma, na concepção do filho, pai e mãe jamais devem ser vistos ou compreendidos totalmente dissociados um do outro, pelo que esse conceito matriarcal ou patriarcal é uma mera distinção didática para estudos de diferentes culturas.

            E, infelizmente existem poucos conhecimentos sobre mitologia indígena brasileira, como antes transcrito de preponderante caráter matriarcal, seja porque os nossos índios não desenvolveram a escrita, seja porque não houve transferência de cultura entre os indígenas e seus sucessores no país, os europeus e depois nós os brasileiros. Ao contrário, com os gregos temos obras literárias compostas por eles no século VIII antes de Cristo, logo após o surgimento da escrita, como a de Hesíodo, somada a uma sucessão de cultura dos gregos para os romanos e destes para toda a cultura ocidental, seja através da literatura ou de religião[10].

            Então essa monografia se aterá aos mitos enunciados por Hesiodo, 2.1 e 2.2, na Teogonia (século VIII AC); e depois será realizada uma análise do personagem Anakim. Esclareço que a saga Star Wars foi escrita por George Lucas[11] atento aos estudos mitológicos, utilizando várias metáforas pertinentes, mas com o diferencial da introdução de um mundo dotado de alta tecnologia: “Guerra nas estrelas certamente possui uma perspectiva mitológica válida. O filme encara o Estado como uma máquina e pergunta: “A máquina vai esmagar a humanidade ou vai colocar-se a seu serviço? ””[12].

            Na mesma linha, autores Byington e Boechat, na compilação Moitará 1, defendem que a tecnologia é uma ferramenta útil, mas que sua utilização não é sintoma, por si só, de que seu detentor tenha um arcabouço psicológico mais lapidado do que integrantes de povos tribais. Boechat faz uma explicação preambular dizendo que não utiliza a expressão “povo primitivo”, preferindo tribal ou pré-letrado, inclusive porque esses grupos ainda que sem tecnologia não hão de serem considerados culturalmente inferiores à sociedade em que estamos.

            Portanto, ainda que a saga seja classificada como ficção ou aventura ela se mostra atenta aos valores mitológicos. É que a mitologia é um conto que transcende as palavras, que decifra aquilo que somente é explicável por meio de símbolos, pois as palavras não sustentam a carga semântica do valor que se quer transcender. E tudo isto para que a vida faça sentido, ou, pelo menos, que seja agradável.

            Aliás, vale deixar indene de dúvidas, os poetas da mitologia, como Hesíodo ou George Lucas, são os intérpretes do mundo, ou seja, são capazes de ecoar como ou porque funciona o cotidiano das pessoas. Eles não são necessariamente gênios ou intermediários insuperáveis, mas se dedicam a ter uma visão mais embrionária dos acontecimentos.

            Consequentemente, a saga não se enquadra no conceito clássico de mito, notadamente porque foi escrita pelo autor como uma peça de ficção, embora seu conteúdo tenha associações com mitos clássicos e sua expressão como peça artística alcança o melhor que um mito fornece: o poder de esclarecer aquilo que representamos ao mundo!

            Nesse sentido: “Assim, o mito não é algo falso, fabuloso ou uma estória apenas agradável de se ouvir, mas um poderoso agente catalisador de mudanças individuais e sociais.”[13].

            Ademais, o mito está intimamente conectado a teoria desenvolvida por Jung acerca do inconsciente coletivo. Aliás, quando o mito é capaz de simbolizar o funcionamento do indivíduo ante a sociedade poder-se-ia dizer que o inconsciente coletivo é expresso pelo próprio mito, pois o cotidiano das pessoas, nesse caso, é pautado pelo mistério que fundamenta a estória mítica.

            Portanto, o inconsciente coletivo, assim como o mito, está intrinsecamente relacionado ao cenário que explica os aspectos objetivo e subjetivo[14] que fundamentam os acontecimentos. Senão vejamos: “Do inconsciente emanam influências determinantes, as quais, independentemente da tradição, conferem semelhanças a cada indivíduo singular, e até identidade de experiências, bem como da forma de representá-las imaginativamente. Uma das provas principais disto é o paralelismo quase universal dos motivos mitológicos, que denominei arquétipos, devido a sua natureza primordial.” [15].

            Em resumo, quanto ao estudo anima/animus demonstrará que o filho, sob o aspecto sexual, interage em situação de fraqueza contra sua origem, pois ele deriva da comunhão de duas pessoas, ambos os pais, face um: o filho; vulnerabilidade que expõe a situação de desconforto de quem está sujeito à dependência emocional vertical. Quanto à leitura dos mitos exporá a natureza dos relacionamentos, ou seja, a forma como cada um se enxerga, o que dará luz à alteridade. Por essas razões, vislumbraremos o parricídio simbólico, enquanto construído sem derramamento de sangue nem sentimentos de destruição, como o caminho que conduz ao amadurecimento do homem, em benefício da plenitude como ser.

 

 

 

Capítulo 1 - Anima e Animus - A Importância da Imagem de Casal para o Filho

 

            Recorro à percepção conceitual junguiana para alcançar a demanda pela sexualidade cindida:

 

Estas ideias sobre anima e animus levaram-me a adentrar ainda mais nos problemas sentidos supremos, e mais coisas afloraram para reexame. Nessa época, eu concordava com o princípio kantiano de que existiam coisas que nunca poderiam ser resolvidas e que, portanto, não se deveria especular sobre elas, mas me parecia que, se eu pudesse encontrar essas ideias precisas sobre anima, valia bem a pena tentar formular uma concepção de Deus. Mas não consegui chegar a nada satisfatório e pensei, por algum tempo, que talvez a figura da anima fosse a divindade. Eu disse a mim mesmo que talvez os homens tivessem originariamente um Deus feminino; mas, cansando-se de ser governado pelas mulheres, derrubaram este Deus. Pus praticamente todo o problema sentido supremo na anima e concebi-a como o espírito dominante da psique. Desta forma, travei uma discussão psicológica comigo mesmo acerca do problema de Deus. (       Jung. Livro Vermelho. Página 234).

 

            Parece que anima/animus significariam que um homem só se torna um ser completo com uma mulher e vice-versa:

Se sois rapazes, então vosso Deus é uma mulher.

Se sois mulheres, então vosso Deus é um rapaz.

Se sois homens, então vosso Deus é uma moça.

Deus está onde vós não estais.

Portanto: é sábio que se tenha um Deus. Isto serve para vossa perfeição.

Uma moça é futura parturiente.

Um rapaz é futuro gerativo.

Uma mulher é: ter parido.

Um homem é: ter gerado...

(Jung. Livro Vermelho. Página 234).

           

            Um filho de nossa espécie, ao menos até a tecnologia atual, só pode ser gerado pela soma de genes masculinos e femininos, pois até clone tem extraída essa característica. Então parece que a natureza, ao menos sob o ponto de vista de procriação humana, exige a união de opostos sexuais para a concepção. No entanto, ter filhos não é sinal de sucesso ou fracasso sob o ponto de vista psicológico, daí não se entrará na discussão de eventuais limitações da homoafetividade; ou da herança geracional debatida desde a Grécia antiga e imortalizada em filmes como o Planeta dos Macacos onde ter herdeiro seria fundamental. O que interessa saber é como o filho vê a sua alteridade no que tange a influência do poder sexual dos pais, pois quanto a sua própria vida sexual ele não precisa se identificar com alguém do sexo oposto, ou sequer da sua espécie.

            Pois bem, o poderio sexual dos genitores face o filho é a faceta mais contundente do verticalismo, na medida em que a criança se vê em estado de vulnerabilidade na qualidade de ser supostamente incompleto contra dois seres supostamente completos, dada a união entre si dos pais. A ideia de completude aqui indica que os dois parâmetros principais da criança são para ela uma entidade só: a ascensão paterna somada a materna. Ocorre que esse jogo de poder é desequilibrado, pois são dois contra um, e principalmente porque a superação do verticalismo só se perfaz quando compreendidos os dois, ou seja, não cabe ao filho se associar a um deles para encontrar a “verdade”. Para encontrá-la ele terá que compreender ambos em todas suas diferenças e não se associar a nenhum deles em detrimento do outro. Somente assim supera-se o verticalismo sexual.

            Caso não haja a superação, frustações com pessoas exercendo autoridade, como chefes ou administradores públicos, ocorrerão repetidamente na vida do filho. É que o caminho para a evolução é tornar obsoleto o modelo existente, o que não inclui se chocar com ele.

            Ainda que certas atitudes pareçam sensatas, em tese, na prática é comum a busca por uma espécie de verdade que nem a disciplina da instituição onde se eventualmente está quer oferecer, nem a pessoa no exercício dessa liderança. E nesse caso, a disciplina ou lei assume a representação vertical feminina ou materna, e o comandante/mestre assume a representação vertical masculina ou paterna, pois quando se está em grupo o feminino simboliza a disciplina da instituição, sob seu aspecto de campo para agir; e o masculino simboliza os administradores da instituição, sob seu aspecto fálico de impulsão. Mas, isto não significa dizer que, por exemplo, na corregedoria ou conselho onde se elabora a disciplina só haverá mulheres, e nas funções executivas da organização só homens; pois, como Jung pontua, tanto homem e mulher possuem lados sexuais invertidos no campo racional. E, a finalidade de uma empresa não é sexual, por isso que o sexo, para esse fim, não faz diferença, ou, ao máximo, faz uma diferença secundária.

            Analisando sistemicamente a sexualidade somada a divindade vale a leitura: “Você pensa em Deus como o pai. Agora, nas religiões em que o Deus ou o criador é a mãe, o mundo inteiro é o corpo dela. Fora daí não há nada. O Deus masculino geralmente está em outra parte. Mas masculino e feminino são dois aspectos de um só princípio.”[16]. Essa é a ideia mitológica que expressa a relação do filho para com seus pais: pai e mãe são, na visão do filho, uma indivisível divindade, ao menos até processado o parricídio simbólico.

            Ocorre que causa perplexidade no filho cindir a divindade, ou seja, aceitar que seu pai e sua mãe são duas entidades autônomas. A raiz da dificuldade dessa latente incompreensão reside na necessidade do homem ter que aprender sozinho, ser autodidata, pois para agir da sua própria maneira deve retirar a máscara divina dos pais. Nesse caminho, os pais não são inimigos, mas também não são confiáveis, pois se pretende avançar onde eles não são capazes de enxergar ou contemplar. É de fato o lapidado conceito de crueldade estética, o de saber que não se pode depender em nada da visão dos pais, pois ela é vesga e insuficiente a levar onde se pretende chegar.

            Crono, Zeus ou Anakim, nenhum deles for capaz de trilhar seus próprios caminhos. Crono e Zeus atacaram os pais. Anakim já nasceu sem pai, mas a vida toda desenvolveu uma pulsão por morte contra pessoas que projetava a figura de proteção paterna.

            A crueldade estética é expressa pela imperiosa necessidade que o homem tem de compreender as pessoas que o cercam. Deve perceber que há vontade em tudo que é vivo e que isso há de ser enfrentado, o que implica em tomar posturas francas, inclusive as mais justas consigo para garantir tal abordagem. Essa conformação é impiedosa porquanto exige do homem uma lucidez desagradável aos seus instintos mais animais ou originários, notadamente os de domínio ou influência sobre pessoas. Somente essa força é capaz de moldar o homem ao processo individuatório.

            A lucidez desagradável é devida ao jogo de manipulação recíproco entre os pais. Jogo esse que nem eles sabem fielmente que estão jogando. Vejamos, há uma espécie de sedução entre os pais que vai muito além do ato sexual. Trata-se de um jogo político. E para eles o filho deve ser um espectador assíduo desse “espetáculo”. É que é corriqueiro que os pais acresçam ao jogo político que travam entre si a admiração dos filhos, como uma plateia. Quem nunca escutou a frase “Só não me separo por causa das crianças”. O pai ou mãe que pensa assim acredita que o casamento faz bem ao filho, mas na verdade somente está ensinando ele a protagonizar jogos sociais de péssima qualidade.

            Derivam, daí, várias consequências, como a eventual necessidade de separação dos pais para que o filho “acorde” que eles não são deuses[17]. Às vezes somente com a separação o filho perceberá que o cotidiano dos pais é um jogo político, do qual o desejo sexual é fator integrante. No nascimento isso naturalmente ocorre entre a criança e os pais, mas quem não elabora o parricídio simbólico transfere, inconscientemente, essas figuras divinas para os filhos que tiver, e também algum “mestre” social como um chefe. Dessa maneira pretendendo eternizar suas infantilidades, de caráter vertical, projetando-as em quem as aceitar.

            Em suma, jogo político e jogo sexual são atividades correlatas, ainda que pareçam se confundir nos relacionamentos amorosos. Mas para ao filho é muito difícil perceber tal distinção, principalmente quando os pais são casados. Certo é que hoje em dia há uma tendência a transformar a rigidez desse panorama, citando troca de casais, voyerismo ou surubas. Tais encontros explicitam que a energia sexual não se esgota no jogo político do casal. E, tal percepção pode ser muito dolorosa para um filho, notadamente para aquele excessivamente submisso à autoridade dos pais.

            Quanto à perspectiva biológica, a espécie humana precisa de dois opostos cindidos para gerar único oposto, ou seja, o espermatozoide do homem somado ao óvulo da mulher geram um homem ou mulher. Esse fator biológico implica em uma cisão seguida da possibilidade de criação: O ADN é composto do material genético cindido do pai, metade do ADN do filho, com o material genético cindido da mãe, outra metade do ADN do filho. Dessa maneira, o filho é uma fragmentação tanto do pai quanto da mãe; então as forças que demandam a vinda de um filho ao mundo são a soma fragmentada do amor[18] entre pai e mãe. Essa complexidade biológica deve ser contemplada pelo homem como sua própria consistência, pois foi o caminho que a natureza encontrou para edificar a espécie humana. No entanto, para o filho tal complexidade demanda reflexão para que ele não perca a confiança em si, mesmo quando se der conta de sua vulnerabilidade perante os pais. Problema não é se dar conta da vulnerabilidade. Problema é a consequência disso: Ou o filho fica acuado, submisso; ou o filho vira autodidata para criar a sua própria realidade em ordem a tornar obsoleta essa realidade fragmentada que recebeu dos pais.

            Essa fragmentação se expressa na necessidade do filho ter que encontrar seu oposto sexual fora do ambiente familiar, contexto que por si já demonstra como o complexo familiar não satisfaz as necessidades do filho, que ante tal incompletude tem que se aventurar na selva social em busca de sua outra metade sexual. É que como a espécie humana é separada em macho e fêmea, em tese, um precisa do outro para se auto realizar como entidade inteira, plena. Vale a leitura: “A integração dos opostos sexuais (o andrógino) é, portanto, símbolo do processo de individuação.” [19]. Portanto, sob a perspectiva sexual, ou se abraça voto de castidade, ou se auto aceita como ser incompleto no campo genital, ou se encontra a sua outra metade, se é que isso seja viável, para que, nesse último caso, o ser sinta a sensação de plenitude sexual: “O andrógino, como figura original mitológica, de uma humanidade anterior, representa também a totalidade do ser, e é um símbolo do arquétipo do si-mesmo.” [20].

            Em suma, na relação entre pais e filho, os genitores, ao menos aos olhos da criatura, são uma entidade plena entre si. E, o filho, na qualidade de metade no que tange a genitália sexual, fica vulnerável ante a totalidade sexual que os pais representam. Tal totalidade é a razão pela qual não existe parricídio ou matricídio isolado um do outro, porquanto só ocorrem conjuntamente mediante o parricídio simbólico.

            A vulnerabilidade do filho é expressiva no que tange a necessidade que ele tem de sair do ambiente familiar para encontrar sua referência sexual, sob pena de projetar suas forças contra os pais incorrendo no complexo de Édipo. Isto porque se o filho não desenvolver sadiamente sua sexualidade compensará essa repressão contra as figuras de autoridade que tiver. Ocorre que essa busca além das paredes da família acarreta insegurança, pelo que transcrevo Jung para ilustrar essa problemática: “Podemos então compreender por que se recorre ao “círculo protetor”. Este deve impedir a “efluxão”, protegendo a unidade da consciência contra a fragmentação provocada pelo inconsciente. ”[21]. Tal fragmentação a que Jung se refere parece ser a demanda da sexualidade cindida, ou seja, a necessidade do filho em ter um lastro de confiança fora de si para completar a metade sexual que é.

            Enfim, não há estrada segura, pelo contrário a busca pela segurança somente gera insegurança. O caminho deve ser a da imagem abaixo: viver a própria vida deixando livres as pessoas ao redor. Na realidade o tal “círculo protetor” não garante proteção no sentido de estabilidade, mas sim serve a tornar viável um mínimo de discernimento, para que o observador não interprete atitudes desconhecidas como estranhas em ordem a respondê-las como ameaças. Em última análise, confiar em si também implica em confiar no próximo, mas enquanto não se alcança esse estágio de puro dinamismo somente resta ao observador permitir ao próximo o máximo de liberdade por ele querida.

 


                             

Imagem na capa do livro O Segredo da Flor de Ouro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capitulo 2 – Estudos dos mitos

 

2.1 Urano e Crono

           

            Na Teogonia, Hesíodo narra que Urano e Geia são a primeira geração de Deuses. Trata-se do primeiro casal. Eles tiveram 12 filhos e o último foi Crono: “E todos os filhos que nasceram de Geia e Urano, filhos terríveis, foram odiados desde o começo por seu pai. Assim que nasciam, ele os escondia nas profundas entranhas de Geia, impedindo-os de sair à luz...” [22].

            A denominação de terríveis explica sua classe: os Titãs[23], os quais são a segunda geração de Deuses. Eles são bárbaros. Vivem do desejo de possuir tudo que lhes chame a atenção. Seus limites não são dados por eles mesmos, mas sim pela medida que os outros impeçam suas invasões ou barbáries. E, por isso, tudo que é novo ou diferente gera medo ou cobiça, razão pela qual atiça a vontade tirânica de possuir ou consumir. É que eles não compreendem que o mundo é um interelacionamento, ou seja, não sabem que possuem alteridade que demanda uma troca: um caminho inverso do que eles causam ao próximo. Eles são dominados por impulsos, mesmo sem se preocupar se podem dar conta de eventual consequência, inclusive quando, pelas circunstâncias fáticas, deveriam conscientizar a situação.

            No caso do primeiro casal do mundo, o que permitiu o nascimento dos Titãs foi uma discórdia entre pai e mãe, pois Geia queria dar a luz aos filhos, colocá-los no mundo; mas Urano não. Ele queria continuar com toda a atenção de sua esposa. Não aceitava dividir sua esposa com seus filhos. Mas eles clamavam pela atenção materna, o que causava dores na genitora.

            Então, ante a competitividade entre pai e filhos cujo campo foi a atenção da mãe, Geia propôs à prole um ataque ao pai e para isso forjou uma “foice afiada, entalhada como um afiado dente”[24]. No entanto, todos os filhos foram tomados de medo ante a ideia de enfrentar o pai, até que o filho mais novo, Crono, aceitou. Ele teria abraçado a incumbência por ser o que estava mais desajeitado na barriga materna, notadamente o menor e último a ser gerado. Ou talvez por ser aquele com mais coragem de não ficar inerte ante a opressão. Assim, Crono atacou o pai vindo a lhe decepar os genitais. Urano sangrando pela mutilação se afastou de Geia e se tornou o céu, abrindo espaço para que os titãs nascessem e tomassem o mundo.

            Antes, porém, Urano jogou uma maldição em seus filhos, especialmente em Crono: “O pai os recriminava por sua arrogância e os acusava pelo terrível ato, prenunciando o castigo que lhes chegaria um dia.”[25]. O filho mais jovem estava destinado a ser destronado pelo seu filho, conforme previu Urano.

            Pois bem, adentrando na análise simbólica vale primeiramente expor a alteridade entre eles. Urano via os filhos como problema, seja porque eles buscavam atenção da mãe, o que empurrava o pai para o ostracismo, seja porque eles precisavam de espaço para se desenvolverem e o pai não compreendia isto, quiçá porque nunca ninguém lhe explicou o que filhos significam. Nesse ponto, vale relembrar a referência hesiódica antes transcrita: afiado dente. Como é sabido, é natural que a mãe perca a vontade de amamentar quando os dentes começam a aparecer, donde a ideia simbólica do mito é que Geia passou a reconhecer seus filhos não mais como bebês indefesos. Daí, não mais caberia à mãe o papel de mera nutridora, mas a partir de então também de intermediária entre os filhos e a sociedade. Para ilustrar essa transformação: “Os vários rituais de passagem, desde o nascimento físico do indivíduo, passando pela separação do seio e as diversas outras transições até a morte, constelam o arquétipo do herói.”[26].

            De qualquer forma, a mãe tentou, antes de tramar o ato violento, convencer o pai que os filhos deveriam nascer, mas ele ignorou a vontade dela, o que é emblemático, pois os filhos foram concebidos com o sêmen do pai, e depois que eles foram gerados ele não os atendia, queria a mãe como antes, só para ele. Ela tentou conciliar a vontade dos filhos com a do pai, mas esse só pensou em si próprio, negando assim seus filhos, frutos da união entre eles.

            Ante a fragmentação explicada no capítulo anterior é comum ao longo do crescimento da prole a competitividade pela anima/animus, ou seja, filha concorrendo com mãe pela atenção do pai, ou pai concorrendo com filho pela atenção da mãe. Tal concorrência é sintoma de ausência de processo de individuação, pois o filho não está conseguindo desenvolver sua própria sexualidade. Não é a toa que o filho que castrou Crono era homem, ambos do mesmo sexo, desta feita concorrentes pela atenção de anima, notadamente a de Geia.

            Aprofundando a alteridade temos Crono que via o pai como indigno[27] de sua posição de provedor e por isso se sentiu no direito de atacá-lo, fortalecido pelo incentivo dado pela mãe. Então fica a dúvida: teria sido Urano tão intransigente com a vontade dos filhos de participar do mundo? Ou Crono era um açodado que simplesmente invejava seu pai, notadamente pela atenção que a mãe dedicava a seu marido? Certo é que atacar o pai não foi uma boa atitude. Deve-se sempre buscar alternativas para tal ato. Quando se deseja mal ao próximo se está reflexamente desejando mal a si próprio, principalmente quando o bode expiatório[28] é uma pessoa que preenche tanto a alteridade como o pai ou a mãe. Ocorre que Crono revoltou-se contra o pai e esse se limitou a enunciar uma maldição contra o filho. O genitor estava ciente de que o filho padecia do mesmo mal que ele, pois ambos miravam o poder de reinar em absoluto sobre o mundo. E é natural que uma pessoa com tal ambição venha a ter filhos e que esses se revoltem contra ela.

            Esse mito aponta um corte entre a natureza e o homem. Geia e Urano são como índios em uma tribo, no sentido de estarem totalmente conectados aos valores externos, o que para o livro Tipos Psicológicos veio a significar a extroversão. É que o primeiro casal de Deuses assumiu o polo de forças da natureza, quando Crono se dissociou deles, através do exercício de sua introversão titânica.  

            Então vale, para esclarecer essa importante dialética junguiana, a referência: “Outro paralelo de nosso problema é a oposição encontrada por Nietzsche entre o apolíneo e o dionisíaco. Interessante é a comparação que usa para entender essa oposição. Estes opostos estão um para o outro como sonho e embriagues.” [29]. Aqui Jung demonstra que o conceito é caso de tese face antítese, ou seja, atrações recíprocas por ambos possuírem qualidades respeitáveis, mas nenhum estar completamente confortável perante o mundo. O sonho seria, pelo lado positivo, uma poderosa vivência psíquica dada sua intimidade ao sonhador; e pelo negativo, tendente ao delírio. Já a embriagues seria, pelo lado positivo, uma afirmação dos próprios sentimentos; e pelo negativo, um esforço “descarrilhado dos trilhos” de auto esquecimento, ainda que visando uma superação de si mesmo. E prossegue Jung no mesmo verso: “O apolíneo é, portanto, segundo a concepção de Nietzsche, um voltar-se para dentro de si mesmo, a introversão. O dionisíaco , ao contrário, é o fluir solto da libido para as coisas. Diz Nietzsche: “Sob o feitiço do dionisíaco celebra-se novamente não só a aliança entre os homens, mas também a natureza alienada, hostil e subjugada celebra sua festa de reconciliação com seu filho perdido, o homem.””. Ante a leitura percebe-se que mesmo quando o homem formou os primeiros reinados deixando para trás a organização tribal não ganhou independência da natureza, tanto que em relevantes aspectos as forças ligadas a ela assumem a figura de extroversão dentro dessa dialética teorizada por Jung.

            Nesse sentido: “A própria ciência, quando desencantou a natureza, apenas a subordinou à razão científica e não proveu a natureza de outra alma.”.[30] Aliás, se a superação da organização tribal até a vida moderna tivesse sido empreendida por homens afetos aos aspectos míticos dos acontecimentos hoje não teríamos que considerar uma classe específica de supostos protetores da natureza chamados ambientalistas se opondo frequentemente a outros setores sociais, porquanto seria intrínseco a todo homem da cidade o cuidado ambiental.

            Prosseguindo, Urano não se interessa pelo novo ou diferente. Ele acreditava que tudo que importa ele já conhece e não quer mudar sua rotina. Já Crono, ainda que fosse um tirano, apresentava um grau diferenciado de introversão, ao menos em comparação com seu pai. E tal introversão é o motivo do corte entre homem e natureza. Senão vejamos: Urano, como fenômeno da natureza, perseguia uma adaptação ao ambiente, sem maiores reflexões às forças externas a ele; ao passo que Crono manifestava certo ímpeto pela diferenciação da natureza, o que acabou por criar a introversão, subjetivando sua existência a de seus irmãos e formando a classe dos Titãs, sob sua liderança, grupo que não mais era simples fenômeno da natureza, mas também descendente dela. E, assim passou a existir a subjetividade em grau considerável a ponto de construir a dialética junguiana em abordagem.

            Não é a toa que o confronto geracional ocorreu, pois na visão meramente objetiva de Urano seus filhos somente queriam se aproveitar da mãe. O fato é que houve a necessidade de corte que foi materializado pela violência da castração, notadamente pela intolerância recíproca.

 

2.2 Crono e Zeus

            Segundo Hesíodo narra, a segunda geração dos deuses, os Titãs, foi comandada por Crono, que tomou sua irmã Reia como esposa[31]. Tiveram quatro filhos que foram todos engolidos pelo pai: “Manteve-se à espreita, observando atentamente, e engolia cada um de seus filhos logo ao nascer.”[32] e “... assim fazendo para impedir que qualquer outro dos altivos filhos de Urano tivesse a honra de reinar entre os imortais.”[33].

            Então, Reia estava para parir seu quinto filho, Zeus: “Suplicou aos seus pais, Geia e o estrelado[34] Urano, que tramassem um ardil que lhe permitisse ocultar o nascimento daquele filho.”[35]. O plano foi dar a Crono uma pedra ao invés de seu filho e entregá-lo à avó Geia para criá-lo em uma montanha distante, o que veio a ser feito.

            Com o crescimento de Zeus, sob os cuidados de sua avó, ele tornou-se forte; e sob sua liderança a terceira geração divina venceu a segunda, os Titãs, na guerra que travaram pelo domínio do mundo. E, assim findou o violento embate: “Então com arrebatado ânimo Zeus o arrojou ao profundo Tártaro.”[36]. Dessa maneira, Crono foi destinado a viver “em uma região coberta de mofo úmido, nos confins da terra prodigiosa.”[37]. Aqui vale lembrar que Tártaro é a mais inóspita região da terra, e parte integrante de Geia.

            Pois bem, adentrando na análise simbólica, clara a obsessão de Crono: continuar reinando onipotente sobre todos. E a maldição era uma ameaça constante a esse ideal. Outro ponto fundamental é como a relação entre Crono e Zeus é intermediada por Geia: começou a relação entre eles com ela escondendo seu neto e terminou com ela aprisionando seu filho. Simbolicamente, Geia representa todo o território do mundo, donde se conclui que o verdadeiro objeto ou tema da Teogonia não é o nascimento dos Deuses, mas sim o parricídio, principalmente entre Crono e Zeus, nos exatos termos em que o mundo se resume ao espaço entre os avós Geia e Urano afastados pela castração e mantidos assim pelo deus Atlas[38]. Então, toda a situação envolve, inconscientemente, cenário familiar.

            E, ainda que Urano estivesse mais ausente do que Geia, dado ela protagonizar as ações descritas após a castração, eles estavam, para toda a eternidade, conectados como céu e terra; assim formando um só todo. Aliás, esse todo único é a exata manifestação de anima vertical exposta no capítulo anterior, ou seja, a relação de Crono com qualquer dos pais, jamais era isolada do outro genitor, ainda que o outro genitor estivesse afastado, pois o genitor presente não desconsidera jamais a energia sexual do outro, ainda que tal consideração se dê no plano exclusivo inconsciente.

            O caminho para superar isso é através do parricídio simbólico, a partir do qual o verticalismo cede e a relação entre o filho e seus pais pode passar a ser como uma afetuosa amizade social.

            Outro ponto que merece realce é a função de intermediação que a mulher biologicamente possui: nutrição e ocultação, lembrando que na gestação a mãe exerce naturalmente essas funções; ao pai sob uma perspectiva e ao filho com outra, ou seja, nutre o feto pelo umbilical enquanto na ótica do pai o ventre oculta o filho. Então, dada essas premissas, aos olhos de Crono, Zeus foi ocultado pela avó, enquanto que para Zeus ele se viu nutrido pela avó. Aqui podemos visualizar como essa estrada de mão dupla é simbolizada na Teogonia, ou seja, para a percepção de um homem a atuação feminina é nutrição e para o outro é uma ocultação. Essa dupla face nutrição/ocultação é uma marca do verticalismo, pois quando a mulher está contribuindo com essas características é porque há questões de autoridade inconscientes, mas aptas a eclodir entre aqueles que se veem ocultos/nutridos. Por óbvio, durante a gestação ou amamentação essas funções são bem vindas, mas seu prolongamento à fase adulta sugere desenvolvimento edipiano.

            Aprofundando a alteridade, na visão de Zeus ele se viu compelido a destronar o pai. As duas intermediárias entre eles, a avó e a mãe, sinalizavam o combate. Pela ótica da avó, ela sentia falta do marido, saudade demonstrada pelo simbolismo de que céu e terra só se tocam muito rapidamente no amanhecer ou no pôr do sol. Já pela ótica da mãe ela sofria pela falta dos filhos engolidos, ao mesmo tempo em que intuía eles reclamando, ante a obsessão paterna pela dominação.

            Já no que tange a visão de Crono em relação a Zeus, o pai demonstra certa abertura ao diferente, mas incorrendo no equívoco de temer aquilo que não conhece, o que demanda o ato de tão logo perceber o novel já ir ao sentido de apropriação dessa energia, sem qualquer análise consciente sobre ela.

            Portanto, Zeus apresentava um nível de introversão face extroversão bastante ampliado ante seu pai. Tal expansão marca o salto evolucional de sua geração, porquanto ele se diferenciava em relação a seu pai, na medida em que seus opostos psíquicos eram mais lapidados. O fato de Crono engolir os filhos exterioriza a pretensão dele em domar a energia psíquica avançada da prole. Aqui vale pontuar diferenças entre os métodos de filicídio: Urano sequer queria tomar conhecimento da energia psíquica do filho, o que era simbolizado pelo impedimento ao nascimento. Tal comportamento explicita sua rigidez qualificada pelo fechamento ao diferente. Já o filicídio da geração seguinte simboliza que Crono já apresentava abertura ao processo evolucional psíquico, na medida em que visava apropriação da energia dos filhos. O primeiro negava os filhos enquanto entes autônomos, enquanto que o segundo queria absorver a energia deles.

            Em suma, entre a primeira e segunda gerações, o parricídio representa o corte que abriu espaço para a introversão, através do descolamento do homem perante a força motriz una da natureza. Já entre a segunda e terceira gerações o corte tem uma dupla função: tentar restabelecer a harmonia entre homem e natureza que foi quebrada pela geração titânica, o que se manifesta, simbolicamente, pela boa relação de Zeus com Geia; e, também, a função de por fim a obsessão pelo filicídio. Nesse sentido: “O movimento de devoramento filicida, típico da tradição cultural falocêntrica, tem, entretanto, um fim.”[39]. O autor prossegue concluindo no parágrafo seguinte: “a atitude de devoramento competitivo típico do padrão patrilineal cessa, e um equilíbrio reina entre os olímpicos...”.

            Questão relevante é compreender se a geração de Zeus representaria o estágio final de evolução humana, notadamente por que seria parâmetro de homem em individuação? É que a geração olímpica inaugurou um novo modelo de disciplina, o da negociação, lembrando que a guerra travada entre Crono e Zeus foi precedida de uma investida de convencimento empreendida pelo filho que culminou por conquistar além de sua geração também integrantes de gerações mais antigas.

            A negociação começou antes da guerra e, depois da vitória Zeus continuou com essa qualidade de negociador, pois ainda que fosse o “grande pai” do Olimpo, por várias vezes negociava em favor de outros deuses ou mortais. Aliás, é próprio do líder de clã a função de agregador, conciliando os interesses de seus familiares de forma a manter o grupo forte e unido.

            Mas, a indagação fundamental é se esse poder de negociação seria suficiente ao processo de individuação ou não, ou seja, se o estilo de vida de Zeus estava conduzindo o líder da terceira geração a sua evolução como ser ou não?

            Ele era um ditador, se auto intitulando dono do Olimpo e sem contestação nesse sentido. Então, pelo simples fato do governo onipresente a alteridade saudável é afastada, pois agia como um líder de clã, não só perante seu próprio clã, mas sim perante todos os outros clãs, como se a sua família tivesse valores predominantes face qualquer outra, de maneira que sua evolução se estagnou. Aliás, é até difícil conceber outro clã, pois sua atuação social praticamente excluía tal possibilidade.

            Ocorre que não há movimento de individuação ou elã vital[40] para quem se fecha para o outro e passa a acreditar que seus valores familiares são supremos. Portanto, Zeus simboliza características de líder familiar. Mas, nos dias de hoje, alguém com tal comportamento precisaria de ajuda pública a sustentar os vínculos que mantinha, seja com deuses ou mortais. Isto porque o pai do olimpo não alcançou a liberdade do parricídio simbólico tanto que suas relações foram pautadas pelo verticalismo: seja como pai do Olimpo, em que sua autoridade preponderava sobre seus irmãos ou demais deuses; seja na dualidade deus face homem, em que resta meridiano que ele agia em plano de prepotência como autoridade superpoderosa numa opressão constante e tão cega que nunca foi questionada pelos homens mortais.

            Hoje em dia essa vivência só prosperaria se Zeus fosse um político autoritário ou dono de uma empresa com regras imperativas, seja para agir como deus perante mortais, marca de verticalismo; seja para garantir que as atitudes familiares extravagantes não fossem rejeitadas por uma sociedade consciente.

            Como se sabe, no Brasil é comum se confundir o público com o privado, como quando o administrador público ou empresário acolhe uma secretária como amante, e ela, a partir daí, fica com benesses em relação aos outros funcionários. O simbolismo mitológico de Zeus trazido para o Brasil de hoje redunda nisso. E, o pior: se essa quebra de impessoalidade profissional se limitasse a revoltar funcionários de tais empresas e a conduzissem a falência estaria bom. Ocorre que é comum tais personagens no serviço público beneficiando ilicitamente não só amantes mas simples amizades em detrimento das regras legais de isonomia. E, como o poder público não vai a falência, então essa situação se eterniza tornando o Brasil um antro de corrupção, enriquecendo egoisticamente uns poucos que detém poder governamental ou seus companheiros privados que com eles contratam, ao arrepio da coletividade. A solução para isso é a superação mitológica do modelo olímpico para outro em que não haja a confusão da vida pessoal com a profissional em prejuízo da dinâmica funcional dos organismos empresariais ou governamentais.

            Em sentido oposto: “Dentro de uma leitura arquetípica, chamaríamos Atená de uma figura de Anima, a Anima de Zeus. A Anima, a feminilidade inconsciente do homem, preside seu processo de individuação.”[41]. E, na página seguinte prossegue: “Assim a consciência pode evoluir das trevas iniciais para a luz, do Cáos a Zeus, do teratomorfismo ao antropomorfismo (Junito Brandão).”. Ao que se extrai das transcrições, o autor Boechat entende que Zeus teria alcançado o arquétipo da alteridade[42].

            Já Campbell faz uma leitura diferenciada de Zeus. O autor compara o olímpico a outros Deuses supremos para obter duas conclusões que se interelacionam: eles simbolizam a imagem paterna; e eles seriam perfeitos dentro da cultura que os criou. Vejamos: “O mistério do pai aparentemente autocontraditório é vivamente narrado na figura de uma grande divindade do Peru pré-histórico, chamado Viraconcha.”[43]. E no mesmo parágrafo pontua: “Viraconcha é o Deus Universal, o criador de todas as coisas...”. No parágrafo seguinte, ele aponta como característica típica desses personagens exemplares o domínio de raios:

            “Ademais sua síntese entre o deus-sol e o deus-trovão é familiar. Conhecemo-la através da mitologia hebraica de Jeová, no qual as características de dois deuses se acham unidas (Jeová, um deus-trovão, e El, um deus solar); ela é evidente na personificação Navajo dos Guerreiros Gêmeos; é patente do caráter de Zeus, assim como no raio e no halo presentes em certas formas de Buda.”.

 

            Após, Campbell sugere que o raio pode tanto simbolizar a luz que leva consciência ou o poder de integrar opostos. Para o autor americano, portanto, é natural que cada cultura desenvolva uma personificação mitológica que seria perfeita aos olhos do seu povo. Zeus seria essa referência aos olhos dos gregos antigos, o que não significa dizer que ele refletiria características individuadas aos padrões junguianos. Aliás, ser individuado quiçá jamais será conhecido, dada a individuação ser um processo cujo fim pode vir a coincidir com o término do mundo, pois se a realidade é composta de tempo-espaço então um observador individuado, logo além de qualquer processo no sentido de movimento, estaria além desses limites físicos. Enfim, para Campbell é natural que uma sociedade construa um mito que reúna as qualidades que seu povo considera dignas de apreciação, tudo isso em benefício de uma coletividade com valores próprios.

            Sociedade com valores próprios é o máximo que uma coletividade pode almejar alcançar. E nesse ponto a Grécia antiga é um fantástico exemplo de estudo mitológico. Mas o Brasil de hoje não é mais o modelo que demandou Zeus como exemplo de homem, pelo que cabe ao brasileiro gratidão a um povo tão brilhante quanto ao grego, por ter demonstrado, em seu apogeu mitológico, coesão como grupo e harmonia ante sua vibrante diversidade.

            No entanto, aos brasileiros cabe não copiar o que os gregos disseram, mas sim copiar o que eles fizeram: criar valores próprios. O Brasil apresenta todas as facilidades para se transformar no raio simbólico do mundo globalizado: reunimos pacificamente etnias de todo o planeta; não apresentamos segregações ou castas de nenhuma natureza; possuímos unidade linguística; e nossa cultura é uma fumegante mistura de todas as demais do globo.

 

2.3 Anakim Skywalker – O Filho sem Pai e seu Destino

            Narra a saga Star Wars que em uma galáxia muito distante nasceu uma criança que foi criada somente pela mãe, uma escrava. Ele cresceu em um planeta fora do circuito oficial da República. Lá não chegava a autoridade do Senado intergaláctico, nem seu dinheiro era válido.

            Pois bem, sua infância já diz muito sobre ele. Criado só pela mãe, com todo o carinho de uma senhora atenciosa não se viu limitado pelo verticalismo paterno, daí ter se tornado uma pessoa voltada para as questões tendentes ao universal, característica típica de um Jedi. Aliás, a ideia religiosa em Jesus não ter pai humano é a mesma: tornar um ser totalmente voltado aos pensamentos mais universais. Isso porque sem a figura de autoridade patriarcal introjetando valores particularizados no filho, ele tenderá a se envolver com as questões universais, seja para lutar por mudanças visando uma sociedade melhor, ou, pelo lado outro, para se entregar a alguma via de perdição social como crime ou algum submundo social.

            O fato de a mãe ser uma escrava demonstra que a visão de mundo do filho inclinava à absoluta insatisfação com a ordem vigente, pois a moral do escravo é a de não aceitação do funcionamento da sociedade, por isso ele se coloca em uma posição de submissão, para não ter que participar de uma realidade que considera péssima. Tal característica, no caso de uma criança com grandes iniciativas e inteligência como Anakim fez com que, tão logo começasse a interagir com outra realidade distinta da familiar, fosse se aventurar em uma jornada heroica.

            Quanto à infância em um planeta alheio ao sistema oficial simboliza imprevisibilidade dele aos cidadãos de lá. Não é a toa que os Jedis sempre o viram com desconfiança, pois não conseguiam reconhecê-lo ou decifrá-lo totalmente. Esse potencial ainda não revelado é um poderoso sintoma porquanto pode conduzir a feitos magníficos, mas também pode levar às ruínas. A mitopoese dessa indefinição expressa que o ser possuidor desse dom é capaz de enganar a morte, ao menos aos olhos de quem lhe atribui a dúvida sobre o potencial ainda não amadurecido. E uma pessoa que se mostra com uma versatilidade tamanha a ponto de fazer esquecer que a morte existe é dono do poder de conquistar as pessoas. O grande mérito de uma estória mitológica é tornar simbolicamente claro o que não está perceptível no cotidiano. E, a arte que a saga utilizou para ilustrar o relacionamento que cada um tem com a morte gerou a profecia de que o predestinado traria equilíbrio à força. Anakim, quando encarna a projeção desse predestinado está causando nos Jedis sensação de eternidade. Ocorre que inebriados com tal sentir não se deram conta que o herói a cada dia se aproximava do poder que eles mais temiam. O conselho Jedi não percebeu a aproximação do personagem heroico com o lado negro, pois os conselheiros não o respeitavam como indivíduo, mas sim o que ele podia dar para o complexo em que estavam: a manutenção do poder Jedi ante qualquer ameaça Sith.

            Aqui vale uma pausa para explicar um importante conceito junguiano, qual seja, o complexo. Esse conceito explica como é o relacionamento do indivíduo com uma coletividade específica, senão vejamos: “Eles mostram ao indivíduo os problemas não resolvidos, o lugar onde sofrem, ao menos provisoriamente, uma derrota, onde existe algo que ele não pode esquecer ou superar, enfim o ponto fraco, no mais amplo sentido da palavra.”[44].

            O complexo é o cenário que reúne as condições subjetivas e objetivas em que o indivíduo está inserido. Quanto ao elemento subjetivo é o conjunto das vontades das pessoas que participam, e o principal elemento objetivo é a finalidade do complexo. A relevante utilidade do complexo para fins simbólicos é situar o indivíduo com relação a seus próprios objetivos. Por exemplo, a vivência em um clube é um complexo. Se o indivíduo estiver alinhado com os propósitos dessa associação é um bom sinal. Mas, comumente a vontade dos participantes é consideravelmente incompatível com a proposta da entidade, então, nesse ambiente, aquele que estiver bem intencionado com os aspectos objetivos pode estar em conflito com os elementos subjetivos. Aliás, a própria finalidade pode ser alterada pela vontade dos participantes. De qualquer forma, o importante ao indivíduo é que ele esteja consciente para com esses elementos; e o caminho para isso é transparência nas relações entre os participantes, e franqueza no trato das questões objetivas, pois quando não há esse respeito tende a eclodir algum conflito em prejuízo de todos.

            Se Anakim não tivesse escondido seu relacionamento amoroso da ordem provavelmente a galáxia não teria encontrado as trevas apresentadas pelo governo do lado negro. Vale continuar com o texto transcrito: “Surge obviamente do choque entre uma necessidade de adaptação e a constituição especial e inadequada do indivíduo para suprir essa necessidade. Visto assim, o complexo é um sintoma valioso para diagnosticar uma disposição individual.”. A ordem Jedi é um fantástico exemplo simbólico de complexo, notadamente por ser uma entidade central para a sociedade, sendo referência de valores elevados para todos, ao menos durante o período de existência da república galáctica, época da última trilogia divulgada.

            Prosseguindo, uma criança superpoderosa criada em um planeta não filiado à República simboliza um poder incontrolável para os parâmetros dessa sociedade. Não é a toa que, quando o Qui-Gon mediu[45] o sangue do Anakim e descobriu que seria a maior medição já registrada, disse ao seu pupilo Kenobi que, se ele tivesse nascido sob as leis da República, já teria sido identificado. Esse é o paradoxo: Anakim era poderoso demais para aquela sociedade. Estava selado o destino do jovem: Ele jamais teria uma relação de afeto inequívoco com a ordem Jedi. Haveria sempre uma desconfiança recíproca, pois na visão do jovem ele se sentia oprimido pela moral que eles objetivavam na república; já na visão dos conselheiros da ordem, ele era imprevisível, pois ambicionava mais do que a entidade poderia dar.

            Anakim estava destinado a ter que decidir entre obedecer a moral dos Jedis ou não, e caso optasse por não obedecê-la, teria que optar entre atacá-la ou alcançar um nível de superação que o tornasse indiferente a ela. Quanto a primeira decisão, ele afrontou a moral Jedi tão logo tornou-se adolescente: enamorou-se, e também procurou sua mãe, ao arrepio do código Jedi que proíbe relacionamentos afetivos do tipo sexual ou familiar, supostamente para garantir independência em favor da atenção exclusiva às questões da República.

            Quanto à segunda decisão, aqui vale uma análise mais detida dada sua profundidade. Enquanto Anakim corrompia-se perante o código devido ao seu casamento com Padmé, ele projetava no presidente do Senado, Sidious, sua aspiração pela independência da ordem. Até que a situação chegou a um limite de intolerância entre esses vínculos afetivos no momento em que mestre Windu, o mais hábil Jedi, tentou matar o presidente por ter descoberto que ele seria um Sith, seu principal inimigo. Aí, Anakim defendeu o Sith vindo a atacar o Jedi e, ato contínuo, pactuou com o presidente sua submissão a ele, para juntos tomarem a República como império.

            O grande perigo da corrupção é esse: um dia a fatura é cobrada. Pois vejamos: Enquanto Anakim escondia dos Jedis sua atitude indevida ante o código, ele projetava a frustação causada pela mentira em outro símbolo forte: Sidious. Então, quando o choque entre Jedis e Sith ocorreu, ele optou por ficar com aquele que lhe dava mais atenção, vindo a se tornar Vader.

            Simbolicamente o personagem Vader significa a estagnação que o personagem Anakim assimilou por passar a defender valores que não são dele, notadamente abrindo mão de sua vida pessoal, como ter que ocultar o casamento, em favor de algo que ele acreditou maior: a administração pública. Mas, a verdadeira indagação é porque ele acreditou maior a administração pública do que sua vida pessoal? Uma das razões era justamente não administrar satisfatoriamente a própria vida, fraqueza manifesta no medo de perder a atenção da esposa por ter que dividi-la com os filhos prestes a nascer. Isto fica claro quando ele cala a mulher dizendo que a salvará da morte no parto, demonstrando em uma leitura cuidadosa, com tal frase, o desejo de que os filhos não tivessem autonomia de vida além da dele, ou seja, uma forma indireta de continuar monopolizando a atenção de Padmé.

            Aqui digno de registro como tanto a Teogonia quanto Star Wars são, em sua essência, contos sobre relacionamento entre pais e filhos, valendo citar que a redenção do personagem Vader somente ocorreu quando protegeu seu filho do imperador no final do episódio VI, ou seja, ele só se libertou do seu purgatório como Sith no momento em que teve em si o ímpeto de pai. Cabe contemplar que a ida do herói ao lado negro se deu no momento do nascimento do filho, bem como o desligamento dessa máscara ocorreu quando Vader se sentiu pai pela primeira vez.

            Voltando a dialética junguiana, um certeiro método didático[46] para compreensão do comportamento humano utilizado simbolicamente pela saga está na concentração dos principais aspectos da introversão na ordem Jedi, e da extroversão na dupla[47] Sith. Quanto à ordem, Anakim respeitava os valores de honestidade e transparência que a instituição defendia, até que o conselho lhe pediu que agisse contra esses preceitos, investigando o presidente do Senado, e o mandando fazer fora dos registros oficiais da entidade; e ainda abusando da amizade entre eles, pois Anakim teria que aproveitar da confiança do amigo para investigá-lo. Como se vê, na prática o preço para ser um Jedi era altíssimo, devoção total.

            Quanto aos Siths, deixavam claro que só o status lhes interessavam, postura mais evoluída que a dos Jedis que também se preocupavam com suas posições sociais, mas negavam isto. Lado outro, os Siths não tinham qualquer limite, notadamente consumindo o que lhes causava atração. Então, Anakim encontrou nos Jedis sua ligação subjetiva com as pessoas, e no imperador sua ambição pelo poder, fechando assim a linha de opostos introversão face extroversão.

            Ocorre que não existem pessoas indiferentes à administração pública, nem administração pública sem pessoas. Não há como conceber uma sociedade sem administração. Aliás, o problema não é a existência do administrador, mas sim a má qualidade dele. É que o mais evoluído modelo de sociedade seria aquela em que o administrador tem plena consciência de que seu poder, no exercício da função, não pode servir em benefício específico de si, pois aqui teríamos a melhor dinâmica possível a permear a coletividade já que dentro da movimentação pública a alteridade não estaria travada por nenhuma repressão originada no psiquismo do administrador.

            Aí a razão pela qual os Jedis precisarem dos Siths como referência e vice-versa, notadamente porque ambos necessitavam particularizar a alteridade em benefício próprio, sem o que os Jedis não receberiam o status de principais defensores da república, enquanto que os Sith não poderiam tomar a administração pública para si. Portanto, quanto mais Anakim se dividia entre eles, mais perdido na moral de ambos se encontrava. Como diria Jung, ele não foi capaz de integrar sua sombra[48]. Ele deveria ter compreendido suas duas referências, Jedis e Siths, e, então, percorrido seus próprios caminhos ao invés de criticá-los, notadamente por não superar a moral que ambos abraçavam. Em uma análise sistêmica, a mensagem de fundo da saga, no campo político, é que nem república ou ditadura são modelos de governo perfeitos.

            Interessante ressaltar que o herói criticou contundentemente seu mestre Kenobi por várias vezes, principalmente em conversas com sua esposa. E, quando passou ao lado do imperador passou a criticar esse, inicialmente a sua esposa e depois a seu filho. Pontuo que enquanto submisso à ordem jedi, criticava seu mestre Kenobi e depois submisso ao império criticava seu mestre Sidious, donde se conclui que o problema era a autoridade moral de seus “chefes”, pouca diferença fazendo se seriam da instituição introvertida ou da liderança extrovertida, pois ambos se submetiam a uma visão filosófica paralela.

            Por tudo isto, é cabível afirmar que o herói trocou uma vida feliz ao lado de uma bela e atenciosa esposa, por uma vida robótica de opressão. E isso se deu não pelas híbris em que caiu, mas sim por não confiar em si e, consequentemente, acreditar que precisava de algum motor externo a ele que resolvesse suas carências.

            É comum, em uma leitura açodada, presumir que certas condutas levam a vitórias ou derrotas. Ocorre que no mundo real não é assim que funciona. Então, vale tecer maiores comentários sobre hibris[49]. É um excesso ou avanço que o herói empreende e, assim, desloca seu eixo visão. É um sinal de mudança. No caso de Star Wars, posso citar dois exemplos em que Anakim caiu em híbris e foi punido por isso, uma vez com sequelas para a consciência outra vez com sequelas físicas. Ele matou toda a tribo que prendeu sua mãe, inclusive crianças; mas depois teve crises de consciência e desabalou com sua mulher, a qual o compreendeu, e depois, com o presidente, o qual utilizou essa informação para auxiliar a manipulação dele no caminho da vingança, sentimento típico de um Sith. No outro caso ele teve o braço decepado ao final da luta quando partiu impiedosamente contra Dookan, ao reclame de seu mestre. Mas, em mitologia grega, há casos de híbris que não causaram danos ao herói, pelo contrário lhe garantiu proveitos.

            Em Star Wars a híbris traz consequências ruins porque se o herói está inserido em um contexto que demanda o controle do mestre, como a ordem Jedi, ele pode até desconsiderar o que seu tutor diz, mas para isto deve também estar além da influência da instituição que participam. No caso de Anakim ele nunca respeitou inequivocamente seu mestre, mas nunca pensou em ir além do alcance da ordem Jedi, e, ainda, sempre cobiçando o título de mestre, como se esse status fosse lhe garantir a independência que sonhava. De qualquer forma, atos agressivos, sob o ponto de vista junguiano não parecem se sustentar em nenhum caso.

            Prosseguindo na análise, a disputa de poder entre Jedi e Sith, que se tornou o cotidiano de Anakim, simboliza que o herói entregou sua vida sexual a eles, inicialmente pelo voto de castidade dado a ordem Jedi e depois com a promessa de eternidade que acreditou o lado negro daria a sua esposa, feita pelo presidente do Senado para salvá-la de supostos infortúnios cenalizados em pesadelos. Como se vê, o caminho pela autodestruição teve vários elementos de combustão, como não separação entre vida pessoal e profissional, medo da morte e dificuldade de respeitar as escolhas de seu par sexual, Padmé.

                Outro ponto teórico que merece abordagem é rito de passagem. Vale diferenciar que pode ser definido sob duas formas, quais sejam, em ritual fechado ou como verdadeiro instrumento de transformação e superação psicológica. No ritual fechado teríamos, como exemplo, uma formatura ou um casamento. Nos povos tribais tais rituais eram mais demorados e complexos que na cidade contemporânea, valendo transcrever: “Em cerimônias de nascimento e de morte, os efeitos significativos são, na verdade, os que compõem a experiência dos pais e parentes. Todos os rituais de passagem pretendem atingir, não apenas o candidato, mas também todos os membros do seu círculo”[50]. Então, nesses casos não há uma consistente evolução psicológica. Trata-se de uma mudança no estilo de vida, como afirma a descrição, a qual é pré-estabelecida pelos costumes e que não é capaz de integrar opostos inatos no inconsciente.

            Já no caso de profunda transformação da psique podemos citar a jornada de Perseu[51], ou o herói em abordagem, Anakim, caso, ao final do episódio III, tivesse integrado seus opostos, ao invés de se alienar ao complexo deles, como ocorreu. Aqui não há qualquer roteiro social que garanta segurança para as cerimônias porque é empreendido um intenso mergulho no inconsciente onde os vínculos afetivos do herói são contundentemente questionados. Daí, muitas pessoas ficarem prostradas pelo meio do caminho passando então a demonizar alguém ou alguma entidade como causadora de sua prostração. Mas, pelo outro lado, caso a passagem seja bem sucedida alcança-se novel nível de consciência, mais amplo e colorido do que o anterior. No caso do personagem Anakim os anos da guerra dos clones teriam sido esse mergulho no inconsciente que alcançou seu momento de decisão definitiva quando ele se juntou ao Sith Sidious. Ou seja, sua jornada não foi concluída, pois o herói não foi capaz de compreender que ele tinha opção entre o sistema polarizado, Jedis face Siths, em que estava, ou abraçar uma vida afetiva que ele esboçava com sua esposa. Tanto que sua esposa Padmé, na qualidade de anima, lhe rogou, mesmo após sua rendição ao Sith, que eles fugissem e deixassem tudo para trás. Mas, ele já estava cego em sua decisão de assumir, a qualquer custo, o poder na galáxia com a finalidade de criar seus filhos totalmente submissos mediante o contexto de ditadura que justificasse a onipotência do chefe de família, o que não foi aceito por sua esposa. E, é claro, veio a pagar o preço por tamanho desejo por apropriação, Darth Vader que o diga.

            Em suma, o rito de passagem para ser efetivamente funcional e, com isso, integrar opostos, notadamente a sombra do observador, deve ser trilhado pelo herói fora de trilhos convencionados socialmente. Tal desmedida ou híbris é o que faz do herói o verdadeiro transformador de si, para através deste poder levar benefícios a toda a sociedade, e consequentemente a si próprio, por estar vivendo em um mundo melhor.

            Como é corrente em estudos junguianos, a sombra é o oposto do observador dentro do complexo que eles participam: “... em Nietzsche, Zaratrusta descobre sua sombra no “mais feio dos homens””.[52]. A integração da sombra é justamente o que distingue o rito de passagem com capacidade transformadora da simples cerimônia.

            Por fim, ilustro outro ponto crucial da sociedade contemporânea trazida como pano de fundo em Star Wars e que está intimamente ligada à alteridade do homem moderno: a alta tecnologia. No livro Moitará 1, os vários junguianos que escreveram seus textos são unânimes em afirmar que o estágio tecnológico de uma sociedade não é sinal, por si só, do grau de evolução psicológica dos seus integrantes. Para tanto é mais significativo o grau de profundidade dos rituais desenvolvidos, ou seja, o que o homem faz com seu corpo é mais importante do que a tecnologia pode oferecer ao corpo humano. A alteridade por detrás é clara: alta tecnologia não preenche de forma satisfatória as carências da psique humana. Esse assunto é travado no filme em vários aspectos, mas o principal é como o personagem Anakim foi incorporado pelo homem-máquina Darth Vader. Aqui a metáfora é que o homem que não desenvolve seu próprio corpo em favor da diferenciação como criatura poderá ter sua alteridade preenchida pela tecnologia, sob o preço de se submeter às forças coletivas, que no filme foram representadas pelo império que Vader veio a servir.

            Em suma, a tecnologia não passa de um instrumento a servir o homem, jamais para substituir sua intuição, no sentido bergsoniano do conceito: “Procuremos ver, não mais com os olhos apenas da inteligência, que só apreende o todo feito e que olha de fora, mas como o espírito, ou seja, essa faculdade de ver que é imanente à faculdade de agir e que jorra, de certo modo, da torção do querer sobre si mesmo.” [53]. Para Bergson, a inteligência sempre está em busca de razão ou coerência sendo, por isso limitada, pois não alcança o dinamismo do mundo, motivo pelo qual é indigna de confiança. E, o máximo que a tecnologia alcança é esse limite. Já para agir com intuição, ou como ele diz com o espírito presente, há de se aceitar que o observador é responsável pelos seus atos, o que só é viável quando nada é divinificado, a não ser a própria capacidade do observador. 

 

 
 

Capítulo 3 - Individuação e Parricídio

 

            Individuação é a ideia central da psicologia junguiana. Jung acreditou que a vida é um processo com início e fim onde a duração entre esses extremos é o momento em que se tem a consciência dos acontecimentos. Então, nesse processo cabe ao homem se diferenciar como indivíduo:

A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual. (Jung. Tipos Psicológicos. Página 467).

Uma vez que o indivíduo não é um ser único, mas pressupõe também um relacionamento coletivo para sua existência, também o processo de individuação não leva ao isolamento, mas a um relacionamento coletivo mais intenso e mais abrangente. (Jung. Tipos Psicológicos, Página 468).

           

            Como se diferenciar sem se isolar? Pois se a sociedade prescinde de segurança, a qual demanda uma constância nas aparências, então não estamos diante de um paradoxo? Sim, estamos. E para concebermos a vida sob a ótica desse processo psicológico devemos nos ater aos ensinamentos de Bergson sobre intervalo[54]: “... a força interior que permite ao ser libertar-se do ritmo de escoamento das coisas, reter cada vez melhor o passado para influenciar cada vez mais profundamente o porvir.”[55].

            Neste peculiar Bergson e Nietzsche tem citações parecidas: “Esquecer não é uma simples vis inertiae (força inercial), como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido, graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência.”[56].

            Vejamos as equivalências entre os textos: para ter vez a força inibidora ativa imprescindível a plena retenção do passado no sentido Bergsoniano de memória perfeitamente constituída no indivíduo. Para Bergson, se o homem não for capaz de conceber os acontecimentos como eles se deram, então essa memória será imprecisa, o que limitará o porvir.

            Friso que memória precisa abrange não só lembrar dentro da concepção leiga, por exemplo, não se filiar a acontecimentos, teses, pelo grau de consideração com os protagonistas, notadamente suas visões verticais como é comum em partidos políticos. Concretamente falando, as guerras são o ápice dessa alienação, e recentemente vivemos um paradigma de conflito em que as tese e antítese mostraram-se muito aparentes, praticamente didáticas: a guerra fria quando, no planeta, as pessoas alienaram sua capacidade de lembrar suas individualidades em favor da dualidade capitalismo face socialismo. Nesse período bélico, ante a dualidade, ficou evidente como as pessoas perderam a capacidade de refletir sobre suas atitudes, pelo que vale tecer explicações sobre o alcance do estado reflexivo: “Jung tece estas correspondências nos lembrando que a reflexão é, seguindo a etimologia, um reflexio, um inclinar-se para trás. O reflexio e a criatividade são pois duas atividades instintivas básicas do ser.”[57]. Acertado o autor Boechat quando visiona reflexão e criatividade como paralelas, pois são atividades que só funcionam adequadamente quando consciência e inconsciência estão fluindo dinamicamente na mente do observador. De fato, inclinar para trás, como sugere Jung, implica numa superação, sem a qual a visão panorâmica do que ficou para trás não é nítida, pelo que é cabível vislumbrar que reflexão e criatividade são duas faces da mesma moeda, já que evolução é a soma do desgarramento daquilo que ficou superado (reflexão) com a capacidade de dinamizar o estado novel (criatividade).

            Tal entendimento confirma a possibilidade de um processo vital, conforme preleciona Jung quando se refere à individuação. Isto porque a vida, em individuação, seria uma constante evolução. Claro é que ninguém explica porque não nascemos evoluídos? Ou porque ninguém é perfeito? Tais perguntas ainda que dotadas de total sensatez não tornam ninguém mais evoluído ou perfeito pelo simples fato de ser capaz de formulá-las.

            Então, o processo de individuação é a doutrina ou método teórico-instrumental a conduzir esta jornada. E, a principal ferramenta nesse caminho é o estudo dos mitos, pois “O mundo simbólico da mitologia pode ser visto como um espelho de nossa própria paisagem interior.”[58]. Ou na mesma linha:

Os arquétipos a serem descobertos e assimilados são precisamente aqueles que inspiraram, nos anais da cultura humana, as imagens básicas dos rituais, da mitologia e das visões. Esses “seres eternos do sonho” não devem ser confundidos com as figuras simbólicas, modificadas individualmente, que surgem num pesadelo ou na insanidade mental do indivíduo ainda atormentado. O sonho é o mito personalizado e o mito é o sonho despersonalizado; o mito e o sonho simbolizam, da mesma maneira geral, a dinâmica da psique. Mas, nos sonhos, as formas são destorcidas pelos problemas particulares do sonhador, ao passo que, nos mitos, os problemas e soluções apresentados são válidos diretamente para toda a humanidade.”. (Campbell. O herói de Mil Faces. Página 27).

           

            Prosseguindo, vale esclarecer o significado simbólico do parricídio. Pois bem, ainda que não seja possível explicar coerentemente a criação do mundo, é possível explicar coerentemente como o homem veio ao mundo: fruto do sexo e geração intrauterina. E ainda que a modernidade traga outras formas de concepção/geração, elas serão explicáveis à criança. Dessa maneira, a criança tem uma origem o que determina seus afetos com pai, mãe e que servirá como padrão para os afetos que estabelecer ao longo da vida.

            Então, a criança enquanto ser dependente tem sua alteridade composta desta herança de mundo que lhe foi apresentado através de seus pais. Daí, para a criança conquistar sua independência precisará se posicionar nesse ambiente e isso explica porque a mitologia é tão rica em estórias de ataques entre pais e filhos ou, em geral, entre mestres e aprendizes. É que para quem chegou por último pode não enxergar alternativa para se impor no mundo além de atacar quem já estava antes dele.

            Em suma, o homem é concebido e gerado por outros homens o que gera uma relação vertical. Tal desproporcionalidade de forças, criador face criatura, permanece na memória do filho inclusive após o término da gestação seguida dos cuidados infantis; e a única superação para ela é o parricídio simbólico. Enquanto o filho não for capaz de empreender sucesso nesse caminho ficará refém de sua memória confusa com a dos pais, ou seja, o filho só será senhor de seu próprio reino quando souber distinguir entre sua memória e a dos pais, ou ao menos tiver plena consciência de eventual compartilhamento de visões, ou seja, ainda que pensem o mesmo sobre determinado assunto podem estar todos tendo uma percepção limitada.

            Ocorre que se deve ter o cuidado de não dissociação das origens, ou seja, mesmo o filho tendo que se afastar emocionalmente dos pais, mediante o rito de passagem, não lhe é cabível uma ruptura maior que a necessária, sob pena do filho se identificar com algum complexo familiar que não lhe é próprio e com isso ficar eternamente perdido de seu eixo de força. O filho deve prosseguir em sua jornada mesmo vendo os pais abalados, mas não deve, jamais, projetar neles culpa ou responsabilidade por infortúnios que estejam ocorrendo nesse processo. Então, é provável que os pais não apoiem o filho, mas é imensurável o que farão nesse sentido, como por exemplo, se meterem onde não são chamados, ou pretenderem influenciar questões que somente deveriam respeitar. Não custa lembrar que o salto para a individuação implica no achatamento do verticalismo e esse desafio demanda perseverança, pois nas trilhas que se deve percorrer são encontrados obstáculos.

            Tais obstáculos são a pura fabricação de imagem do inconsciente. E, a grande dificuldade do rito de passagem é não saber em quem confiar, porque há pessoas que querem frear para a própria proteção de um suposto herói em cega hibris; e outras que querem frear para sugar as forças dele. No primeiro caso são guardiões do complexo, ou seja, pessoas que conhecem o ambiente e percebem a desmedida de eventual ato; no segundo caso são prisioneiros do complexo que querem atrair todos para a sua visão limitada tendente ao auto aniquilamento. Por certo, o prisioneiro tem um lado guardião e vice-versa. E ambos são fruto de aspirações por poder ou desejos reprimidos do aspirante a herói em atuação dentro de um complexo, em razão do desdobramento da memória compartilhada. Aliás, o principal aspecto da individuação é tirar a motivação para os atos da vida de indicações de mestres para colocar em um eixo próprio do individuando, ou seja, apender a viver sem ter que confiar em algum familiar ou líder. Nesse sentido vale a leitura: “Uma das maiores transgressões da mitologia grega (hibris) é o ser humano considerar-se Deus, sendo, por isso, punido com grandes castigos.”[59]. Aqui o autor explicita a hibris como viés do herói que visa engolir violentamente a alteridade, ou seja, quer simplesmente que todos ao seu redor lhe reverenciem; desta maneira ignorando por completo a vontade daquela(s) pessoa(s) que ele busca reverência. E o autor prossegue: “Essa equação simbólica representa a transgressão do sistema binário. Ao pretender-se indevidamente unitária, a consciência decreta sua onipotência e alienação.”. A frase transcrita pode ser dura, impiedosa ao indicar a alienação da consciência, mas é isto que ocorre tal como vimos no personagem Anakim quando ele se aliena ao império na tentativa frustrada de unificar seus dois polos, quais sejam, o subjetivismo da ordem Jedi com o objetivismo dos Sith. De fato, seria maravilhoso se ele tivesse integrado esses opostos, mas como não teve forças para fazê-lo, escolheu a rendição ao verticalismo coletivo manifesto pela administração pública, seja antes pelo reconhecimento de mestre Jedi, seja depois pelo posicionamento de governante totalitário.

            Realmente se trata de uma estória com final muito infeliz: seus filhos foram criados sem sua esposa e distantes dele; ele próprio nunca alcançou o cobiçado status de mestre seja Jedi ou Sith.

            Sob uma perspectiva afetiva os títulos de mestre nada passariam de uma persona[60], já a criação de seus filhos poderia se constituir em uma bela alteridade. Na demanda da saga ele teve que escolher entre persona ou família e ficou com a primeira, a que de nada lhe acrescentava afetivamente.

            Em suma, o conceito que a hibris engloba é fundamental para a jornada de transformação. Se ela for mal sucedida teremos o complexo de Édipo, ou seja, o filho tomando o poder dos pais mediante atropelo desmedido deles. Se bem sucedida teremos o parricídio simbólico. No primeiro caso o filho não foi capaz de lidar com sua alteridade donde a onipotência prevaleceu dentro do sistema binário. No segundo caso o filho integrou a alteridade familiar donde as estradas para um novo horizonte são pavimentadas, notadamente por cair o sistema binário.

            Igualmente, dentro de um contexto ordinário de transferência hereditária, vale tipificar a diferença entre o parricídio literal e simbólico. No parricídio literal há a apropriação do poder paterno, mas também suas chagas, ou seja, o filho que mata fisicamente os pais ou simplesmente pulsiona a morte deles, quando ela ocorre há a passagem da influência que os pais tinham sobre as demais pessoas ou coisas; e isso se manifesta pela herança. Desta maneira, quando o filho se apropria violentamente da herança dos pais haverá a substituirá em sua inteireza, absorvendo o cobiçado poder e sofrendo de suas limitações. Friso que desejar ou pulsionar a morte dos pais também é uma forma de violência, não física, mas psicológica, pois o filho usa a alteridade que possui dos pais para destruí-los.

            Vejamos, Crono matou o pai para ter a atenção da mãe. E o que ganhou com isso? Pouco ou nada, pois somente virou líder dos seus irmãos, liderança que poderia ter desempenhado sem a castração, pois na barriga de Geia todos estavam juntos. Lado outro perdeu sendo marcado de uma indigesta e terrível maldição familiar. Obviamente não compensou.

            E Zeus, tinha necessidade de cometer parricídio? Nada mudou em sua vida, pois seus companheiros de guerra passaram a companhias em seu reinado, ou seja, uma simples continuidade. E, ainda se deu mal ganhando uma esposa super ciumenta que sabotava com requintes de sadismo seus relacionamentos extraconjugais. Talvez se Zeus não tivesse matado seus pais titânicos na guerra, em um pulsante complexo de Édipo, sua mãe estivesse presente para segurar a onda da esposa, o que garantiria menos tragédias a entes queridos estranhos ao seu casamento, conforme conta a mitologia. É que no Olimpo a união Zeus com Hera simboliza o casamento real em que a esposa assume a função de dona de lar e considera eventuais filhos do marido com outras mulheres como espúrios, e, portanto, passíveis de rejeição e, eventualmente, perseguição. Nesse tipo de casamento, por encorpar a tradição típica de uma sociedade com reinados e, portanto dualidade social há uma preocupação entre os nubentes na autopreservação da imagem, o que pela inversa, demonstra que os pais são reféns da alteridade que seus filhos lhes dão, ou seja, Zeus e Hera, na qualidade de casal principal, se veem energizados pela dinâmica que a prole garante em troca do título de filhos principais da sociedade.

            Isso significa que o filho que a isso se submete estará imerso no verticalismo porquanto o que lhe garante, nesse caso, a diferenciação, como pessoa, não é algo que lhe é próprio, mas sim o título de filho do principal casal. Vale a leitura: “A relação tradicional homem-mulher está configurada no hieros gamos (casamento sagrado) de Zeus e Hera.”[61]. Aqui o sagrado não refere a alguma espécie de sublimação, mas sim uma demanda por respeito a título tipicamente monárquico, ou seja, com dualidade social entre quem tem título ou riqueza face quem não tem. No ambiente desse tipo de casamento reúnem-se visíveis características para afloramento edipiano, posto que esse pareça o caminho mais lógico, aos olhos do filho, para perpetuar seu poder vertical perante a sociedade, como entidade superior; dessa maneira eternizando os ciclos de parricídio até que algum filho tenha forças para trilhar caminhos independentes, ou que o reinado se exaure.

            Após essas considerações, fica compreensível que o atentado de filho contra pais é cometido com pretensão de solucionar uma insatisfação. Mas essa visão utilitária é fruto de uma percepção falsa da realidade que generaliza ao invés de discernir. Generaliza quando projeta nos pais suas próprias limitações ou aspirações, ou seja, aquilo que está incomodando o filho, seja por excesso ou falta, é um problema que ele tem que resolver consigo, mas ao invés disso culpa os pais pela agonia que acredita estar sofrendo. Na realidade os pais podem, de fato, representar um inadequado limite ao filho; mas ainda que o panorama seja esse eles estão servindo como intermediários entre o filho e a sociedade. Em outras palavras, quando o filho “se livra” dos pais o limite indireto cai e se levanta um ainda pior: a limitação direta da sociedade, a qual é mais impiedosa por não ter afeto particularizado ao filho.

            Portanto, o discernimento é a capacidade de perceber que mesmo quando os pais parecem “maus”, ou “burros”, ou “egoístas” ou “indignos”, na avaliação do filho, isso se trata de uma visão unilateral e por isso pobre de contexto. Então, discernir é alcançar o autêntico afeto existente entre pais e filho, o qual em sua essência é sadio. Por exemplo, imagine uma tribo em que perto de sua aldeia corre um largo rio. Então, o filho quer tentar atravessá-lo e o pai impede alegando que o rio é intransponível. Aí, se o filho projetar no pai a impossibilidade de transcurso irá odiá-lo por isso. Isso é generalizar. Cabe ao filho conceber que não é porque o pai acredita que o rio é intransponível que assim ele será. Discernir é o filho ser capaz de perceber que a autoridade dos pais nada mais é do que a visão de seus genitores sobre o mundo.

 

 

 

 

 
Conclusão

           

            A superação empreendida pelo vitorioso parricídio simbólico é holística, porque pede por uma consciência sem preconceitos cujo funcionamento adota a visão do todo como meio para a diferenciação. Nossa sociedade caminha nesse sentido evolucional com as áreas de conhecimento tendendo a se ocupar de uma visão sistêmica do problema sem o que não é possível abordá-lo, ao invés de simplesmente considerá-lo algo isolado. O parricídio simbólico demanda essa linha de atitude, pois as infantilidades carregadas para a vida adulta somente são resolvidas compreendendo-se todo o contexto em que elas aparecem.

            De nada adianta cortar o dedo para sarar um machucado na unha. Na mesma linha quando alguém não consegue se adaptar a nenhum emprego de nada adianta parar de trabalhar. Ocorrendo dificuldades à inserção social é porque a pessoa carrega algum trauma[62] que provoca choques quando entra em contato com outra(s). Por isso parar de trabalhar somente refletirá o fracasso de quem não consegue se adaptar laborativamente, ao passo de utilizar a oportunidade para compreender suas limitações inatas. Nesse sentido: “Quem não atravessar a morte subjetiva dos pais repetirá a geração passada na segunda metade da vida. Essa morte, obviamente, é metafórica, e não significa uma ruptura concreta no relacionamento com os pais, mas um processo de polarização emocional.”[63]. A polarização emocional, na prática, impõe que o filho não dependa do controle emocional dos pais mais do que dependeria, nesse aspecto, de um amigo, por isso que quem não trilhou o parricídio simbólico tende a repassar maldade, não só no seio familiar e também em quaisquer complexos que integre, na medida em que espera que o outro engula sua vida afetiva. E quando esse outro está no ambiente profissional o sujeito terá que lutar para se dar ao luxo de agir como ditador, em favor de que suas atitudes infantilizadas não sejam criticadas em um plano de igualdade, até porque é comumente mais fácil assumir a função ditatorial em família do que no trabalho, pois no campo profissional a resistência costuma ser maior por existirem agentes econômicos independentes. Repassar maldade nada mais é do que engolir asperezas de alguém, tomá-las como necessárias e então passá-las adiante, nos exatos termos da primeira frase do trecho transcrito, sob a crença de que aquilo estragado que se engolir deve ser também incorporado por quem vier depois.

            Esse mesmo autor, Byington, no inteiro teor do texto cuja transcrição se refere, faz ponderações não trabalhadas usualmente na literatura, apesar da elevada relevância. Após ele tecer algumas reflexões sobre o arquétipo da morte conclui pela necessidade de negar a dicotomia vida face morte. Ele defende que a morte seja trazida para a vida e não vista como uma expressão do pós-vida, na qualidade de experiência dissociada. De fato, o corpo se depara com a morte desde o nascimento. Crescer como criança significa matar o tamanho anterior. As células do corpo vivem em constante morte seguida de renascimento. No entanto, o homem que se afasta do elã vital tem sua consciência seduzida pela ideia de enganar a morte, a qual é vista, equivocadamente, como uma necessidade premente, ou seja, que irá acontecer no futuro. Daí, a importância de considerar a morte como parte da vida, ou seja, haverá morte quando a vida não estiver sendo exercida em sua plenitude.

            Dessa maneira é alcançada a integração dos opostos, dialética que os junguianos sabem fundamental para que a sombra não destrua a criatividade do ser. A questão é que quanto mais o homem tenta se proteger de um evento futuro e incerto, mais ele fará parte desse evento, ou seja, quanto mais o homem temer a morte, mais ela fará parte de sua vida: “Ou vivemos essa morte sacrificando e ultrapassando o padrão patriarcal e abdicando dela ou tenderemos a atuar o arquétipo da morte em nossa própria destruição.”[64].

            Pois bem, o homem pensa através do tempo-espaço e tal realidade pressupõe um fim. Consequentemente, a consciência, utilizando-se de razão, pode se identificar com a auto conservação o que implica em deixar de viver o elã vital para abraçar atitudes pseudo enganadoras da morte. Pseudo porque funcionam ao contrário: tem a pretensão de afastar a morte, mas servem a atraí-la. Portanto, conviver conjugando o arquétipo da vida com o da morte é a percepção que estar num mundo é um constante fluxo de renascimento. Donde posso concluir que só deve temer a morte quem não está utilizando todo seu potencial vital.

            Feitas essas considerações, vale ingressar na abordagem sistêmica da relação vida face morte quando corretamente unificadas dentro de único plano. Existem os fluxo e seu contra movimento agindo concomitantemente. O fluxo é a manifestação da dependência ao meio que começa com os cuidados dos pais ao bebê e se prolonga com o adulto que não se responsabiliza pelos seus atos. Culpar o mundo pelas próprias limitações ou maus infortúnios é a fuga ao enfrentamento que esse homem irresponsável percorre. Como exemplo, o principal foco da astrologia projeta esse ideal, pois pressupõe que algo externo ao ser influencia a sua vida inescapavelmente. Já a outra força, o contra fluxo, é o despertar da criança que se inicia na infância quando ela se choca com a ideia de ser dona do próprio nariz e termina quando toma para si a responsabilidade de tudo que lhe acontece.

            Dentro do fluxo há dois principais vetores: a força da natureza; e a cumplicidade coletiva. Quanto à força da natureza é a vontade primordial do mundo que manifesta no homem expressa a busca frenética pela estética perfeita, ou seja, qualquer atitude com a finalidade de alcançar dinamismo. Tal ímpeto por conformação objetiva o sentir bem como fim em si mesmo; mas o prazer não é fim, é sim meio. E, o pior: se o ser alcança a finalidade que visou tende à morte na praia, pois a natureza se auto realiza quando alcança seu objetivo, notadamente pela sua característica de força motriz una.  Quanto à cumplicidade coletiva é o desejo de se inserir no dinamismo mediante apoio pelos iguais. Deriva da reunião de duas ou mais pessoas que se unem para defenderem a mesma ideia desconectada da dinâmica da vida, em benefício dos resíduos verticais que contaminam a psique deles. Consequentemente, o homem permanece, caso opte por se render a esse fluxo, se sentindo confortável ante o apoio de seu(s) “amigo(s)”, mesmo se afastando do autêntico dinamismo ou elã vital. É claro que quanto mais o ser se apoiar nesse fluxo pior será quando ele acordar, se manifestar tal força, e quiser se desvencilhar, pois o inconsciente vai se acostumando com a mentira que sustenta o pseudo dinamismo da dupla ou grupo.

            O contra fluxo é a diferenciação junguiana ou o intervalo bergsoniano, ou seja, a capacidade do homem reconhecer os dois vetores do fluxo, não sucumbir a eles e ainda ter forças criativas para reorganizar a realidade a seu favor. É a opção pelo caminho que lhe garanta total aproveitamento das próprias potencialidades.

            Assumir a responsabilidade é um ato de coragem na medida em que perfaz avanço a crenças passadas, pois o homem tem que saltar o obstáculo da zona de conforto, adquirida pelos cuidados que teve em seu desenvolvimento natural, começando com a gestação e indo até a infância. Não é a toa que o último estágio de evolução negocial é o compartilhamento, pois ele demanda atitude além da estagnação cíclica da natureza; indo além, também, dos limites da pseudo dinâmica dos verticalismo partidários.

            Por sua vez, a natureza só demanda uma força motriz regendo o todo enquanto o compartilhamento implica em duas ou mais forças motrizes. Entenda-se força motriz como demanda psicológica, ou seja, na natureza todos estão submetidos unicamente as forças dela como grande mãe. Já no Facebook existem várias forças psicológicas atuando: o compartilhamento de informações ganha vida tanto no aspecto subjetivo envolvendo pessoas quanto no aspecto objetivo mediante o conteúdo de documentos ou imagens postadas. E, o mural é uma pioneira expressão de mundo sem administração ideológica, seja una ou partidária: qualquer um pode postar qualquer dado a qualquer momento, e ninguém recebe email ou fica sabendo a não ser que se interesse em acessar o mural. E, depois de postado quem postou ganha pequenos poderes de administração, que se resumem a explanar aos participantes o funcionamento da própria visão, o que no fundo coloca em questão o relacionamento entre si dos participantes, ou seja, um verdadeiro caldeirão alquímico reunindo os aspectos subjetivos e objetivos a tornar consciente aquilo que é encenado.

            Já a cumplicidade coletiva, tipicamente partidária, oferece pseudo estabilidade a quem tem medo de inovar; e o compartilhamento é uma constante ameaça a essa inércia. Como reza o ditado, a manada só é forte unida: se perderam o elã vital para se apoiarem uns nos outros então não lhes interessa conhecer outra realidade, pois como manada estão todos engessados.

            Compartilhamentos de informações, ou práticas comerciais com esses valores, que hoje são feitos em sites ou no mercado empresarial ganham vida em razão do estágio de evolução alcançado, sem paradigmas anteriores. Compartilhar informações, inclusive parcerias tomadas por grupos ideologicamente concorrentes, indica que os protagonistas nessa relação possuem uma alteridade sadia, na medida em que para aceitar o diferente é porque não está ocorrendo dinâmica que não possa ser exposta a luz do dia.

            O herói aqui, no melhor sentido de jornada transformadora, não é aquele que desbanca o inimigo para casar com a princesa, mas sim aquele dotado do poder de agregar os grupos diferentes mediante o verdadeiro discernimento, qual seja, a visão que vai além das aparências para conhecer as forças que energizam cada posicionamento. Não é a toa que sendo o observador a causa do que acontece, fê-lo a base de suas convicções também inconscientes donde cada posição que alguém manifesta pode ser abordada com respeito.

            Reorganizar a realidade, então, deixa de ser ato divino para se inserir dentro das faculdades do homem responsável, daquele que percebe que o constante funcionamento da psique demanda uma abertura inequívoca às demandas paradoxais que se impõe a cada momento. É de fato abraçar o sentimento que tudo que acontece no mundo é causado por quem está observando, no caso você!

            Igualmente, o propósito do presente estudo pode ser simplificado em uma frase: a vida só é tolerável para quem navega no dinamismo de quem não possui bloqueio vertical. Suscito que a dissociação entre Jung e Freud se deu por causa da aceitação do inconsciente coletivo, pois para Freud o psiquismo se exaure no complexo familiar. Ocorre que, conforme defendido ao longo do presente estudo, o inconsciente coletivo também é fundamentalmente orientado pela relação entre pais e filho, ou seja, o que o filho encontrará na sociedade é um espelhamento de sua vivência com os pais. Portanto, se Freud tivesse pesquisado a fundo a teoria junguiana poderia conciliá-la com a sua, tornando-a perfeita. É que mesmo admitindo a validade do inconsciente coletivo, a fonte desse parâmetro não vai além do vínculo entre pais e filhos, a mais autêntica expressão da energia sexual.

Bibliografia Básica

NIETZSCHE, Friedrich, Além do Bem e do Mal, Editora Companhia de Bolso, 2005, São Paulo/SP.

BYINGTON, Carlos - organizador, Moitará 1, O Simbolismo nas Culturas Indígenas Brasileiras, editora Paulus, 2006, São Paulo/SP.

CAMPBELL, Joseph, O herói de Mil Faces, Editora pensamento, 2007, São Paulo/SP.

BOECHAT, Walter, A Mitopoese da Psique, Editora Vozes, segunda edição, 2008, Petrópolis/RJ.

CAMPBELL, Joseph, Mito e Transformação, Editora Ágora, 2008, São Paulo/SP.

HESÍODO, Teogonia e Trabalhos e Dias, Martin Claret, 2010, São Paulo/SP.

JUNG, Carl Gustav, O homem e seus Símbolos, Editora Nova Fronteira, 2008, Rio de Janeiro/RJ.

JUNG, Carl Gustav, O Livro Vermelho, Editora Vozes, 2010, Petrópolis/ RJ.

NIETZSCHE, Friedrich, Genealogia da Moral, Editora Companhia de Bolso, 2011, Petrópolis/RJ.

NIETZSCHE, Friedrich, Vontade de Potência, Editora Vozes, 2011, Petrópolis/RJ.

CAMPBELL, Joseph, O Poder do Mito, vigésima oitiva edição, Editora Palas Athena, 2011, São Paulo/SP.

BERGSON, Henri, Memória e Vida, segunda edição, Editora Martins Fontes, 2011, São Paulo/SP.

BARTLETT, Sarah, A Bíblia da Mitologia, Editora Pensamento, 2012, São Paulo/SP.

JUNG, Carl Gustav, Tipos Psicológicos, sexta edição, Editora Vozes, 2012, Petrópolis RJ.

JUNG, Carl Gustav, Memórias, Sonhos, Reflexões, Saraiva de bolso, Editora Saraiva, 2012, São Paulo/SP.

JUNG, Carl Gustav, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, oitava edição, Editora Vozes, 2012, Petrópolis RJ.

JUNG, Carl Gustav, O Segredo da Flor de Ouro, décima quarta edição, Editora Vozes, 2012, Petrópolis RJ.

ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Martin Claret, 2012, São Paulo/SP.

FERNANDES, Isabela e Flávia Schlee Eyler, A Vida, a Morte e as Paixões no Mundo Antigo: novas perspectivas, editora Cassará, 2012, Rio de Janeiro/RJ.

CAMPBELL, Joseph, O poder do Mito, edição especial em quatro DVDs, Log On Editora Multimídia, São Paulo/SP.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Bibliografia Complementar

CAMPBELL, Joseph, A Jornada do Herói – Vida e Obra, Editora Ágora, 1999, São Paulo/SP.

ARISTÓTELES, Poética, Editora Imprensa Nacional, 2003, Brasília/DF.

EINSTEIN: Os 100 anos da Teoria da Relatividade, editora Campus, 2005, Rio de Janeiro/RJ.

SPINOZA, Ética, Editora Autêntica, 2007, Belo Horizonte/MG.

SÓCRATES, Apologia de, editora L&PM, 2008, Porto Alegres/RS.

GOUVEA, Alvaro de Pinheiro, Cine Imaginarium, editora PUC/Rio, 2008, Rio de Janeiro/RJ.

O Banquete, Editora L&PM Pocket, 2008, Porto Alegre/RS.

SÊNECA, Sobre a Brevidade da Vida, L&PM Pocket, 2011, Porto Alegre/RS.

SÊNECA, Da Tranquilidade da Alma, L&PM Pocket, 2011, Porto Alegre/RS.

NIETZSCHE, Friedrich, Crepúsculo dos Ídolos, Editora L&PM Pocket, 2009, Porto Alegre/RS.

NIETZSCHE, Friedrich, Assim falava Zaratustra, Editora Vozes, 2011, Petrópolis/RJ.

NIETZSCHE, Friedrich, A Gaia Ciência, Editora Martin Claret, 2011, São Paulo/SP.

JUNG, Carl Gustav, A Criança Divina, Editora Vozes, 2011, Petrópolis RJ.

GOETHE, Fausto, editora Martin Claret, São Paulo/SP.

Versão eletrônica do diálogo platônico “Górgias”, Tradução: Carlos Alberto Nunes Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão A Acrópolis (Filosofia)Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/.


 

            Foto da Pedra da Macumba, no Rio de Janeiro, ilustrando a relação consciente inconsciente sob a representação de força da natureza. O trecho de areia normalmente está tocando a pedra, inclusive com maior área, mas às vezes a areia some e a água se junta, indo de um lado ao outro. Demonstra como uma mente sadia pode operar, notadamente mantendo sua integridade em qualquer circunstância, mesmo em situações extremas, seja no ápice da fase de mudanças, seja no ápice da fase de estabilidade.

            A transformação, no sentido de mudança para melhor também indicada pelo intervalo bergsoniano, aqui aparece metaforicamente em sua forma autêntica, atemporal, ou seja, não se transforma somente quem muda a si próprio, mas, principalmente quem não muda mesmo ante a atuação de forças deformadoras.



[1] Conceito importante na psicologia e que pode ser explicado de inúmeras perspectivas. Exprime a ideia de que o mundo, no sentido de tempo e espaço, é um cenário onde o ser, cada um de nós (o observador), é um protagonista de uma estória cujo roteiro vai além da vontade de si. E, essa parte que sai do controle da cada um é depositada nos outros. Então, a vontade dos outros que afetam o observador é a alteridade.
[2] CAMPBELL. O Herói de Mil Faces. Página 20.
[3] Emprego “verticalismo” com o significado de vulnerabilidade, ou seja, uma visão limitada da realidade que acua o sujeito causada pelo bloqueio entre a percepção da mente do observador e uma dinâmica universal. O bloqueio é a necessidade do filho em concordar com os pais, ou ceder as crenças deles como eles o fazem.
[4] Toda violência é consequência sistêmica de segregação, a qual deriva do sentimento de vulnerabilidade: o sujeito anseia proteção. A proteção exige segregação. Aí a segregação é forjada mediante violência seja moral ou física.
[5] Primeira dissertação, verso 13, Genealogia da Moral.
[6] Byington. Moitará 1. Página 63.
[7] Byington. Moitará 1. Página 44.
[8] Campbell. Herói de Mil Faces. Página 18.
[9] Boechat. Mitopoese da Psique. Página 50.
[10] Religiões milenares que ecoam até hoje absorveram alguns de seus métodos no período grego antigo. Catolicismo é um exemplo disto.
[11] Consta na mídia “O Poder do Mito” filmagem num almoço com Campbell em que o cineastra fala sobre a expressão mitológica da saga. Aliás, eles ficaram amigos depois da primeira trilogia filmada, mas Lucas para fazê-las leu os livros de Campbell. A Entrevista Campbell – Moyers que deu origem ao livro e a mídia foi gravada na biblioteca da Lucasfilm Ltd., Rancho Skywalker, em San Rafael, Califórnia.
[12] Campbell. O Poder do Mito. Página 19.
[13] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 21.
[14] Aspectos objetivos: documentos, lugares, instrumentos, normas. Aspectos subjetivos: vontade ou intenção das pessoas envolvidas.
[15] Jung. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Página 68.
[16] Campbell. O Poder do Mito. Página 52.
[17] Divindades são representações não conscientes sobre autoridades, ou seja, quando alguém não consegue diferenciar seu próprio mito, então, fica sujeito a tomar atitudes por mera obediência. O inconsciente projeta no mundo figuras de autoridades nas pessoas em que o observador se sujeita, sejam ela vivas ou lendárias.
[18] Utilizo a palavra “amor” não em seu significado glamourizado, mas no sentido de vínculo que demandou o ato sexual; relação essa que existe até no estupro, pois mesmo sem ser consentido existe uma atração sistêmica, segundo o conceito de relação de forças lecionado por Nietzsche. Vide livro Vontade de Potência.
[19] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 144.
[20] Idem.
[21] Jung. O Segredo da Flor de Ouro. Página 47.
[22] Hesíodo. Teogonia. Verso 155.
[23] A expressão titã se aproxima do grego Rei. Mas a ideia que Urano quis passar a seu filho é que agora ele teria que governar forças que ele não consegue controlar totalmente. Daí, o insulto no sentido de acusá-lo de irresponsável por se meter no que não devia.
[24] Hesíodo. Teogonia. Verso 176.
[25] Hesíodo. Teogonia. Verso 208.
[26] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 67.
[27] Hesiodo. Teogonia. Verso 170: “Mãe, eu posso me encarregar dessa empresa, pois não reverencio nosso pai, de maligno nome, por ter sido ele quem primeiro tramou ações indignas.”.
[28] É o símbolo de alguém que assume, solitariamente, a culpa por algo indesejável que na realidade é uma prática de todo o grupo, inclusive daqueles que acusam o bode. Identifico no expiatório o mesmo impulso transcendente encontrado no arquétipo do herói, pois ambos se empenham em jornadas pioneiras, sendo que esse o faz de uma forma ativa, empreendedora; enquanto aquele o faz de forma reflexiva. Mas eles equivalem na maneira franca com que abordam a realidade se apegando menos à proteção da manada, via ordinária da sociedade. Aliás, é comum começar a jornada com o simbolismo de um e terminar com o do outro, podendo citar tanto casos literários, mitológicos ou religiosos: o grego Sócrates era tido como um intelectual respeitoso com um irrepreensível histórico guerreiro e acabou condenado a morte em Atenas por transgredir normas coletivas, conforme a Apologia de Sócrates; o Titã Prometeu se aventurou heroicamente pelos homens e acabou condenado por Zeus, conforme narra Hesíodo. Cristo também heroicamente lutou pelos seus discípulos e acabou condenado a morte por Roma, conforme a Bíblia Católica.
[29] Jung. Tipos Psicológicos. Verso 946. Página 511.
[30] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 158.
[31] Hesíodo. Teogonia. Verso 453.
[32] Idem, verso 466.
[33] Idem, verso 460.
[34] Urano após a castração deixou de cobrir somente sua esposa quando se afastou dela e passou a cobrir a todos na qualidade de céu, deixando claro, portanto, sua representação de força da natureza, continuando a influenciar seu filho como tal.
[35] Hesíodo. Teogonia. Verso 470.
[36] Idem, verso 867.
[37] Idem, verso 730.
[38] “Nos confins da terra, coagido por poderosos desígnios, Atlas sustenta o vasto céu sobre sua cabeça, de pé, com infatigáveis braços, diante das Hespérides de doce voz.” (verso 516).
[39] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 50.
[40] Elã vital é um conceito bergsoniano muito parecido com o movimento que conduz a individuação de Jung, e exprime um estado de compatibilidade harmônica que garante uma abertura a qual oportuniza uma clarividência capaz de contrastar o particular face o universal. Para Bergson o universal é perfeito.
[41] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 50.
[42] A expressão “arquétipo da alteridade” é usual nos textos do autor Byington e tem o mesmo sentido de horizontalismo no presente trabalho. Significam a mesma condição, pois não há horizontalismo sem respeito ao outro; assim como não há arquétipo da alteridade sem igualdade.
[43] Campbell. O Herói de Mil Faces. Página 141.
[44] Jung. Tipos Psicológicos. Verso 990.
[45] Os Jedis faziam uma medição sanguínea que mostraria o potencial da pessoa para os fins da ordem, notadamente intuição e afetividade, conforme explicado em conversas ao longo da saga.
[46] Jung deixa claro ao longo do livro Tipos Psicológicos que as distinções que faz: “não tem a finalidade, em si bastante inútil, de dividir as pessoas em categorias; significa, antes, uma psicologia crítica que possibilite a investigação e ordenação metódicas dos materiais empíricos relacionados à psique.”. (contracapa do livro citando trecho do mesmo).
[47] Segundo Yoda, em Star Wars I, os Siths sempre andam em dupla. Ele não explicou a razão, mas é clara: Para ter um mestre e um aprendiz, sendo que o primeiro agirá como divindade e o segundo como carrasco desses “poderes divinos”. É a forma como os Siths preenchem a alteridade entre eles.
[48] “Ambos os modos de pensar sentem o outro como usurpação, surgindo então o efeito sombra que um projeta sobre o outro. O pensar subjetivamente orientado parece mera arbitrariedade e o pensar extrovertido, incomensurável chatice e banalidade. Por isso os dois pontos de vista se digladiam sem tréguas.”. Tipos Psicológicos, página 359.
[49] Para maiores referências sobre híbris vide Isabela Fernandes e Flávia Schlee Eyler. A vida, a Morte e as Paixões no Mundo Antigo.
[50] Campbell. O Herói de Mil Faces. Página 50.
[51] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 78.
[52] Jung. Tipos Psicológicos. Verso 796.
[53] Bergson. Memória e Vida. Página 174.
[54] Para Bergson intervalo é a maior expressão de evolução do homem: a capacidade em escolher de acordo com suas próprias convicções.
[55] Bergson. Memória e Vida. Página 133.
[56] Nietzsche. Genealogia da Moral. Página 43.
[57] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 87.
[58] A Bíblia da Mitologia. Página 14.
[59] Byington. Moitará 1. Página 247.
[60] “A identidade com a persona determina automaticamente uma identidade inconsciente com a alma.”(Jung. Tipos Psicológicos. Verso 761).  Para Jung, a persona encerra uma máscara social que deve ser pelo seu dono contida, dominada; mas se o contrário acontece o fim trágico é certo. Como o oposto da persona no campo interno é a alma, então, se a persona estiver alienada, a consequência relacional será a alienação da alma, donde a capacidade criativa desaparece e o homem se afasta da individuação pelo que estará fadado a receber do mundo o fim que o complexo a que ele se alienou quiser lhe dar.
[61] Boechat. A Mitopoese da Psique. Página 93.
[62] Um trauma psicológico não é tão fácil de visualizar como o físico. Alguém que corriqueiramente toma atitudes danosas ou penosas para si é sinal de um trauma que como não é resolvido pela própria pessoa é por ela incorporado como simplesmente uma situação do cotidiano.
[63] Byington. Moitará 1. Página 62.
[64] Idem, página 90.
 

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